TRANSCENDÊNCIA
Marta Rolim

O som pausado da enxada (tam... tam... tam...) ecoava alto na Caatinga. Eu gostava daquele som seco e ritmado, parecia testemunhar e aprovar o meu esforço. Parecia confirmar a solidez do mundo.

Enquanto o sol das três horas cozia minhas costas e derretia minha cabeça em levas de suor, era bom lembrar que o mundo tinha limites sólidos, pois no calor do sertão tudo era miragem àquela hora. O que se via e o que não se via dependia mais da imaginação do que da terra seca que sustentava nossos pés. Vacilantes pés. 

Fiquei feliz quando vi Cícero despontar detrás de uns arbustos, com sua roupa de couro rústico, que protegia dos lanhos dos espinhos, abundantes na região, estado do Ceará, nordeste do Brasil. Ele descansava o seu turno à sombra de uma grande pedra e agora vinha me fazer companhia, empunhando sua enxada, fazendo-a cantar ao lado da minha (tam-tam... tam-tam... tam-tam!).

Lembro de ter ficado satisfeito com nosso trabalho, apesar de que nada de útil fazíamos. Era um cavar sem fim naquela terra poeirenta e algo morta. Claro, se houvesse água ali – e às vezes havia, muito raramente – as frutas do paraíso nasceriam: grandes, suculentas e doces como mel. Frutas do paraíso. O meu suor pingava no chão (tam-tam... tam-tam... tam-tam...).

Não era difícil imaginar meu suor envolvendo uma semente inerte e despertando nela a vida. Talvez lindas e perfumadas mangas frutificassem. Sim (olhei para o céu azul), talvez chovesse mais tarde e a árvore despontasse vigorosa, rompendo o solo de tijolo, alçando raízes profundas que iriam beber fartamente em algum esquecido rio subterrâneo.

- O que foi Raimundo? – irrompeu Cícero, cortando meus pensamentos.

Eu havia parado de cavar. Tinha me perdido em devaneios outra vez. Era o sol. Assim ia acabar perdendo o emprego, ia sim. O governo nos pagava para cavar quando a seca castigava sem piedade o sertão. Cavávamos açudes para reter a água da chuva, mas todos sabiam que os açudes ficariam secos, como sempre, e a chuva que viesse não deixaria uma gota, que fosse, para contar história. Na verdade cavávamos com nossa própria esperança. Sempre se tinha esperança de que a terra revelasse uma vida nova. Ah, se eu achasse ouro! O ouro do velho Manoel Tobias! 

Os mais amargos diziam que cavávamos sepulturas. 

- Não é nada não, Cícero, só estou meio tonto da cabeça! (Tam!...Tam!..Tam!...) 

Desci a enxada com mais vigor, açoitando aquela terra ingrata, que me negava seus frutos doces.

Cícero era um homem forte, apesar de seus parcos quilos. Seguia cavando firme como um jegue. Antes que eu me perdesse de novo em vertigens, me apontou umas covas rasas e redondas, que se estendiam aqui e acolá na planície de barro trincado. 

- Ali tu não caves que é pisada de dinossauro.

Fui ver de perto as tais pegadas. Então era isso. Não passavam de marcas mal definidas. Aquela terra esgotada fora morada dos gigantes? Sim, houvera muita água, muita água. Ali estava o rastro das bestas. Terão bebido toda a água e comido todos os frutos?

“Não, claro que não!” – Teria dito compadre Cícero, dando uma risadinha debochada e esquisita. Mas eu é que não duvidava de nada, pois aquela terra era cheia de mistérios. Bem que a praga dos dinossauros podia ter morrido de tanto beber água, não deixando nada para nós. As patas enfiadas na lama. Doidice, que fosse! Os sábios que viessem fazer seus cálculos de matemática naquele sertão espinhoso e saíssem de lá cheios de certezas (tam-tam... tam-tam!..).

Continuei a cavar na área autorizada, desviando dos dinossauros. 

Agora havia um perfume no ar, uma aragem de flor. O português Manoel Tobias bem podia estar por ali, em algum lugar. Lembrava bem de sua mansão no vilarejo e de sua fama de sovina. Lembrava daquele cheiro de flor. 

Foi em 1987. O velho Manoel, nosso compatriota, havia saído de casa – coisa que raramente fazia – e ido à cidade. Voltou na boléia de um caminhão lotado de mercadorias. Trouxe todos os eletrodomésticos que se possa imaginar, inclusive três televisões e dois computadores, além de uma impressora de última geração. Uma parafernália moderna naquele fim de mundo. 

Depois, passados poucos dias, mandou chamar a mim, a Cícero e mais alguns peões. 

Queria que a gente fizesse uma cova pra ele. 

Mas não era cova de morte, era cova de açude. Pelo menos achei que era, visto o tamanho da obra. Explicou que o emprego era nosso, que pagava bem, mas que tinha uma exigência a fazer: todo mundo de olho selado.

Se o cabra fosse pego espiando a redondeza, ia pagar com a vida. O trato era esse. As espingardas de cano duplo do velho Tobias, penduradas na parede da sala, não deixavam dúvida. Um carro ia nos pegar em frente à casa do português e nós embarcaríamos de olhos vendados. “Todo o trabalho é de olho fechado” – repetiu o velho.

Pagou bem, muito bem. Nunca ganhei tanto dinheiro! (tam!... tam!...)


Parei, descansei a enxada. Parei pra limpar o suor do rosto, pra erguer um pouco a vista, buscando o horizonte. Cícero também sossegou e virou o rosto, inteiramente afogueado, na minha direção. Os olhos vermelhos de terra ardida.

- Ufa! Tá na hora da água, que aqui ninguém é camelo! – exclamou o bom e sedento Cícero.

- Com certeza, mais um pouco e nós viramos farinha de mandioca. 

Cícero sorriu com seus lábios rachados, tão rachados quanto o barro cozido de sol. Lábios de charque.

Tomamos água salobra e morna (quase vomitei). Melhor do que nada. Perguntei a Cícero se lembrava no velho Manoel Tobias. 

- Não reconheces esse cheiro? – indaguei

Compadre Cícero fungou o ar. 

Não, não lembrava de cheiro nenhum ou preferia não lembrar. 

Voltamos ao trabalho reanimados. O açude crescia. Elevando as enxadas até o alto de nossas cabeças e as deitando fulminantes sobre o solo, prosseguíamos na labuta. Agora não faltava muito para o turno acabar (tcham-tam... tcham-tam... tcham-tam...). O baile das enxadas ainda duraria quase uma hora.

Súbito, notei. O “canto” de minha enxada mudara para um baque amortecido. Cícero não tomou conhecimento ou pareceu não tomar. O velho Tobias...

O velho Manoel Tobias nos trouxera de Portugal ainda meninos, para trabalhar em sua residência "como filhos". Queria mordomos e criados que apreciassem, que soubessem o valor de um vinho do Porto e de um legítimo bacalhau. Apesar de tudo, uma coisa lhe agradeço: ensinou-me a ler e a escrever! Se não bastasse, me ensinou a ter gosto pelos livros; me mostrou o mundo, as invenções dos homens. Mas nessa terra, terra em que fiz família e finquei raízes, palavra bonita e verbo caprichado nunca puseram comida na mesa. Os cabras me tomam por muito inteligente e sabido, mas sou o mais estúpido de todos porque tenho as palavras, mas não tenho o rumo. 

Por mero divertimento, Manoel Tobias nos batizou com nomes brasileiros. Tinha oferecido recompensa aos nossos mercenários pais, ótimo salário em Lisboa, bela moradia paga, garantida. 

Esquisitices de um rico. 

Mas isso foi antes de ele perder a mulher num desastre no mar. Acabou demitindo a nós, os cinco infantes compatriotas, nos deixando com pouco mais que nada. Endoideceu. Trancou-se em casa e ninguém soube dele até o dia em que apareceu com os eletrodomésticos.

Depois, o contrato. Cavar de olhos fechados. E no dia da escavação, o cheiro das flores. O mesmo cheiro que sentia agora atravessando as narinas. Um cheiro silvestre bom, misto de essência de jasmim com um toque acre de alfazema. Algo assim. 

Havíamos cavado com afinco. E ninguém se atreveu a espiar; só seguíamos ordens: “Seu Raimundo, cave mais para a direita e deposite a terra logo em frente”. 

“Sim senhor!” – Obedecia. 

Fomos e voltamos à zona da cova uma dúzia de vezes. Doze dias de trabalho duro. No final o buraco devia ter uns 10 metros de fundura. O guia, o homem de confiança de Manoel Tobias, seguia orientando a obra. A escavação só não progredia muito porque o homem mandava parar toda hora, cada vez que um ovo de dinossauro brotava da terra. O ovo, como o chamávamos, era uma pedra redonda e lisa; dentro dele havia um bicho morto, um relevo qualquer, geralmente de um esconjurado peixe (os malditos lagartos beberam toda a água). Este homem, o guia, via tudo, trabalhava sem venda, apitando o serviço. Quem era mesmo, eu nunca soube. 

Cavamos lá no meio do sertão, bem no meio da Caatinga. Eu não vi o lugar, talvez não fosse tão longe assim, a imaginação de um falso cego prega peças. Não vi o lugar, mas senti (há outras maneiras de ver seu Tobias, há outras maneiras...).

Cavamos e cavamos. Talvez justo onde nossas enxadas batiam agora, rasgando a terra.

Tcham-tam!.. Tcham-tam!.. Tcham-tam!.. 

Terminamos a obra e recebemos o pagamento prometido. O velho nos disse que provavelmente haveria mais trabalho dali um tempo. Pediu que eu, Cícero e os demais cabras fôssemos discretos e não alardeássemos o trabalho e o valor do pagamento. Se ele soubesse de algum falatório nesse sentido, cancelaria a obra na cidade e procuraria outro lugar, onde daria emprego a quem soubesse trabalhar com discrição e honestidade. 

Não precisou falar outra vez. Quem haveria de afrontar a espingarda e ainda jogar fora uma chance de ganho igual aquela? Fechamos nossos olhos e bocas.

Descobri o que se passava quando Manoel Tobias voltou a nos chamar. Desta vez a venda não ficou bem amarrada. Não vi por gosto, não tinha intenção alguma. No coração do sertão (nem tão longe, nem tão perto), o velho construíra um tipo de caverna, profundamente entranhada no solo. A nossa parte do serviço fora apenas uma pequena etapa inicial da obra. Ele estava usando turmas de operários, cada uma concluía só uma etapa da construção, de modo que nenhuma turma de homens tivesse noção completa do serviço. Cada turma cumpria uma tarefa e depois outra turma dava prosseguimento até concluir uma segunda ou terceira etapa, e assim por diante.

A caverna era como imensa casa, mas só pude entrar em três cômodos. Em um, belamente decorado, havia os eletrodomésticos, uma infinidade de aparelhos. Muitos dispostos em requintados armários – mais pareciam redomas de vidro - que revestiam inteiramente as paredes. Os aparelhos maiores estavam assentados em balcões sob medida, como se balcões de cozinha. Tudo muito bem acondicionado, do abridor automático de latas à máquina de lavar. 

Havia luz elétrica na caverna e ouvi o guia comentar algo como “movido à energia solar”. 

Tive medo do que via. Talvez aquela caverna de luxo fosse um abrigo de guerra. Talvez o velho Manuel estivesse envolvido em segredos do governo, sabe-se lá. O pior é que, de quando em quando, o guia vinha verificar se as amarras nos olhos estavam bem firmes. 

A minha estava frouxa (cuidado, não desvie da pedra. Não esqueça de fingir cegueeeeiiiiira). 

Enquanto procurava Cícero, vi o segundo cômodo: um tipo de laboratório. Havia um tanque translúcido cheio de água, mas tinha um cheiro enjoado. E uma cama de enfermaria, algumas máquinas estranhas.

Ainda tive tempo de ver um terceiro cômodo – antes de suplicar a Cícero que me apertasse o pano nos olhos, que o guia já vinha fazer a inspeção - uma biblioteca! Tão grande que não vi seu final. Não imaginava como aquela livraria toda havia chegado ali, mas o certo é que, assim como os eletrodomésticos, também os livros estavam cuidadosamente organizados e acondicionados. Tudo na caverna planejado nos mínimos detalhes. 

Então encontrei Cícero (dê com o dedão na peeedra) e ele prontamente me velou os olhos.

Suspirei. Enfim, cego. 

Mentalmente comecei a repassar o que vira, enquanto carregava caixas e utensílios na escuridão, não sem tropeçar de quando em quando, seguindo a trilha ladeada de cordas, que o guia instalara para que não nos perdêssemos no caminho de leva-traz.

Era uma fortaleza, sem dúvida. Uma trincheira que resistiria aos séculos. A construção era de pedra, blocos maciços, e internamente revestida com camadas protetoras. Inexpugnável e majestosa construção. Também o solo seco e o clima semi-árido em tudo contribuíam para que a caverna fosse um abrigo e tanto. Ademais, com todo o conforto que havia lá dentro, inclusive o capricho na decoração, não haveria de ser ruim morar na caverna por algum tempo, em caso de necessidade. E isso que eu não conhecera nem uma quarta parte dela.

***

Parei de cavar um pouco e limpei a testa molhada com o braço. Minhas mãos estavam doendo, bolhas estouravam, e o sal do suor as fazia arder como chagas. Cícero continuava ao meu lado (tam... tam... tam!), indiferente ao calor, empunhando valentemente a enxada num ritmo constante. 

A trilha dos dinossauros ainda estava lá (cova após cova), apontando a direção que haviam seguido dezenas de milhões de anos antes. 

Naquele tempo havia água fresca e frutos do paraíso. Havia sim. 

Pensei em ir até lá, até as bestas, e destruir todas aquelas pegadas moldadas no barro esturricado. É, talvez eu devesse fazer isso mesmo. Afinal, porque aquelas sombras mortas mereciam mais respeito que meus pés descalços? Ainda corre sangue vivo em minhas veias, ainda!

- Vai ficar muito tempo no ócio, Raimundo? 

Ignorei a voz intrusa de Cícero e olhei para a posição do sol. Haviam passado apenas uns 15 minutos desde a hora da água salobra e ainda precisava fazer a enxada gemer por mais de meia hora. Inspirei profundamente. O perfume de azaléia e traços de alfazema ainda rondava.

Mal pus minha enxada para funcionar e ela gritou um “béim!” agudo ao tocar o chão. Metal contra metal. 

- Raimundo do céu, acho que você encontrou algo! 

Finalmente os ouvidos do bom Cícero despertavam. Mas agora eu é que não estava disposto à conversa fiada.

- Nada, não, uma pedra! – respondi, fingindo juntar um pedregulho do chão. 

Cícero me olhou por um instante, desconfiado, mas logo virou a cara murcha pro outro lado e seguiu a ouvir a ladainha incansável de sua enxada.

Tomei mais cuidado. Minha enxada ultrapassara uma camada macia de um composto marrom e agora atingia o que parecia ser uma superfície metálica. Estávamos numa planície, mas uma falsa planície. Cavávamos num grande buraco plano (nem tão grande assim) – o leito do suposto açude – a uns seis metros de fundura. Era bem possível que naquele sertão, no fundo daquele açude natimorto, a fortaleza bizarra do velho Tobias estivesse plantada. Era bem possível que estivesse logo abaixo de meus pés. Depois eu cavaria com vontade ali, por hora não.

Foi na terceira empreitada que descobri o mistério, pelo menos acho que descobri. Nossa turma estava trabalhando novamente para Manoel Tobias. De olhos bem selados. 

O abrigo estava praticamente pronto. Eu podia perceber isso pela lisura aveludada que revestia as paredes e deslizava suavemente por meus dedos; pelo tapete macio no qual pisávamos; pelo silêncio. Não havia mais o barulho de gente trabalhando com pás, o burburinho das conversas dos homens, e nem ruído de alguma máquina resfolegando. Não. Apenas silêncio e maciez. 

Alguma coisa acontecia na fortaleza sedosa e isso me dava nos nervos. 

Deliberadamente busquei afrouxar a venda. 

Deliberadamente.

E o que vi nunca vou esquecer. O guia me conduziu até um cômodo, o que parecia ser laboratório. Mandou-me esperar sentado numa banqueta. Disse que iria precisar de minha ajuda. Eu enxergava, baixando os olhos, a cintura, as calças cinzas e os sapatos lustrosos do guia. Devia ser doutor, pensei.

Esperei um pouco e ele voltou empurrando uma maca. Sobre ela havia um volume. Um volume longo coberto por um lençol (talvez um corpo, comprido como um corpo). O guia, a quem agora eu chamava de "o doutor", sacou o lençol de uma só vez com um gesto seco e rápido, e tive que conter um grito. 

O velho Tobias estava morto.

Não, não estava morto, pior do que isso, ele ainda respirava.

- Tire a venda, senhor Raimundo! - ordenou o doutor.

Estremeci. Hesitei por alguns instantes, mas era evidente que minha reação à visão do corpo tinha me traído.

Tirei a venda lentamente.

Ali estava o velho Tobias. Nu, pálido e gelado, com todo o aspecto próprio de defunto novo, mas a respiração, por mínima que fosse, ainda oscilava no peito.

Ergui os olhos devagar até alcançar o rosto do doutor. Ele me encarava.

- O senhor deveria estar de olhos bem fechados, senhor Raimundo Junqueira. O contrato...

Fiquei quieto, absolutamente quieto. Poderia ter inventado desculpas, poderia ter dito alguma coisa (mas o senhor mandou eu tirar a venda), me fazer de bobo. Apesar de tudo, fiquei quieto. 

Talvez isso tenha me salvado.

O doutor continuava me encarando, esperando uma ladainha esfarrapada. Sustentei seu olhar, ainda que piscando uma dúzia de vezes. Era como garantir, com meu silêncio, que ainda me restava alguma dignidade.

- Câncer! - exclamou o doutor.

- O que?

- Câncer, ele está tomado de câncer. 

- Quem? - indaguei incrédulo.

O homem apontou para o corpo inerme de Manoel Tobias. Depois passou a me explicar - como se me devesse uma explicação - que tentava ajudar ao velho Tobias (claro doutor, a cura; sim a cura tem de existir enterrada em algum lugar - tam!... tam!...tam!). 

***

Parei de cavar. Segurei a enxada e fiz dela uma muleta improvisada (um pouco de descanso, por favor). Consultei o sol. Mais dez minutos de tortura, somente mais dez ou doze minutos. Nessa altura do dia ninguém mais trabalhava de verdade, era só vadiação. Os braços se negavam, as mãos amoleciam.

Pior é que pretendia voltar à noite e ver que "béim" era aquele que a enxada gritara (podia ser ouro. Metal contra metal).

Talvez o compatriota tivesse me deixado um polpudo patrimônio. Presente bem merecido, já que me roubara a infância.

- Não sou médico! - dissera o doutor subitamente.

Não era médico. Era isso mesmo que afirmara. O que fazia, então, com o morrente nu?

Lembrava bem do sucedido. Queria que o ajudasse a erguer o moribundo Tobias e, com cuidado, com muito cuidado, colocá-lo no tanque cheio de formol (o velho vai se afogar!).

Era isso. Tobias não ia sentir nada, já estava morto; morte cerebral. Morte cerebral. O doutor explicava, o doutor que não era doutor, mas que para mim continuava sendo o doutor. 

Pensei que se não o ajudasse podia ser ruim para mim (quem mandou espiar, Raimundinho? Sabia que a curiosidade mata?). Aquela gente podia ser perigosa, comprava, mandava e desmandava (claro, doutor, pois não. Sim, um peixinho no aquário; sim, ele sabe nadar... não, não vai afundar como um ovo de dinossauro).

O doutor sorriu para mim, um sorriso compadecido. Mandou que eu sentasse na banqueta, que tinha que fazer uns procedimentos antes. Auscultou o coração de Manoel Tobias. Depois desinfetou o pênis do velho e toda a redondeza genital (se já está morto, pra que desinfetar, doutor?). 

Pegou uma lâmina e fez um corte preciso no escroto. Manoel nem se mexeu. São espermatozóides, explicara (Es-per-ma-to-zói-des). Recolheu o que havia para recolher e pôs os tais numa geringonça. Antes os examinou brevemente num microscópio. Em seguida manipulou mais umas químicas, já habituado que estava com aquela alquimia científica.

O doutor fazia tudo com muito cuidado, verdadeiro zelo (tam... tam...).

De repente começou a falar. Era muito amigo de Manoel Tobias. O amava. Na verdade estava realizando o seu último desejo.

Com um gesto ele apontou os pés do morto (ainda está vivo, doutor!), enquanto fazia menção de segurá-lo pelos ombros. Entendi perfeitamente a ordem, mas simplesmente não pude me mover. 

- Vamos! - ameaçou o doutor. 

Aparentemente rompi a paralisia que me tomava e me vi segurando os pés de Manuel Tobias e ajudando a erguê-lo no ar. 
Só percebi o que havia feito quando o velho afundou no tanque cristalino. Imediatamente quis salvá-lo. Quis trazê-lo à tona e sustentar sua cabeça para que respirasse (sim, respire!), mas o doutor me segurou com mãos de ferro e nada pude contra ele. Então, Manoel Tobias exalou bolinhas e inspirou. Pareceu tentar inspirar uma segunda vez. Um ínfimo agito percorreu o fluido, enquanto pequeninas bolinhas escapavam de seu nariz migrando para a superfície como náufragas. 

Apenas um músculo parando seu serviço (tam... ta...t...).

O doutor começou a chorar.

Desabou num choro carregado de emoção. Suas mãos, antes firmes como alicates, agora jaziam trêmulas e frouxas. Ajudei-o a sentar-se na banqueta, enquanto eu mesmo chorava algumas lágrimas doídas. É difícil de explicar, mas súbito compreendia o homem. Aquele choro estremecido. O velho Tobias afogado no tanque. As bolinhas subindo. O último desejo. Um amigo fiel até as tripas. 

- Obrigado... - ele murmurara.

Foi então que o bom doutor, acalmando-se, terminou de me contar tudo.

O velho Tobias, sabendo da proximidade de sua morte, mandara construir aquela casa-caverna. O doutor perguntou o que eu achava que era aquilo. Pensei um pouco e respondi que talvez fosse a casa de seus sonhos. 

- Sim, a casa de seus sonhos eternos.

Era seu mausoléu. Mas, mais do que isso, era sua herança para a humanidade. Como o grande Getúlio Vargas, Manoel Tobias queria sair do mundo para entrar na História. 

Queria ser como os antigos reis do Egito, que haviam construído seus mausoléus, guardando neles toda sorte de objetos, registros escritos, obras de arte e riqueza, além de seus próprios corpos conservados. Manoel Tobias ansiava fazer o mesmo.

Mas não podia fazer sozinho... 

Foi assim que o doutor (ele não me disse seu nome), por amor e respeito ao velho, concordou em ajudá-lo. 

Mil Livros, eletrodomésticos, obras de arte, ovos de dinossauro, ouro, jóias, esperma liofilizado (li-o-fi-li-za-do) e o corpo eterno de Manoel Tobias. Cada item meticulosamente acondicionado nas melhores condições possíveis. Manoel chegara ao cúmulo de ingerir certas drogas, ainda em vida (estava vivo agora a pouco, não estava?), para assegurar que seu corpo não se deteriorasse.

O doutor suspirava. Havia cumprido a parte mais difícil de sua missão. Agora era só selar as portas e enterrar o mausoléu. Ninguém deveria sequer imaginar onde ele, o dito mausoléu, estaria. Aquilo tudo era para o futuro, dali a milhares de anos, quem sabe mais.

O velho era esperto. Sabia que os eletrodomésticos provavelmente se estragariam, apesar dos extremos cuidados tomados; sabia que os livros poderiam se desmanchar; que seu corpo poderia, enfim, ceder ao destino comum dos mortais, contudo, os elementos que sobrassem seriam seu valioso legado. 

Teria sua própria tumba. E teve.

***

Vislumbrei um ovo na terra e comecei a desentocá-lo pacientemente. Cícero já havia parado de trabalhar, o expediente terminara. Mas de repente aquele ovo parecia querer me dizer algo e fui tirá-lo da terra com a força que me restava (tam... tam... tam...). 

Saquei o ovo de seu ninho das eras e o trouxe ao presente. Uma rocha de formato oblongo. Bati no topo da pedra com a lâmina da enxada e a pedra se fendeu em duas metades. E ali estava uma criaturinha curiosa, retorcida. Agachei-me para examiná-la melhor. 

Um pequeno e precioso dinossauro adormecido (tomaram toda a água e comeram todos os frutos?). 

Sim, era esse o momento que Manoel Tobias desejara. Ele queria ser como os ovos nas mãos de um futuro benevolente. Queria ser um ninho inteiro deles; queria ser as pegadas, os ovos e os dentes dos dinossauros (será o tempo misericordioso, meu Deus?). 

Queria mais. Queria ser o faraó, o rei adormecido com seus tesouros. O melhor de si na morte. A ficha médica completa preservada ao lado do tanque. Os fios de cabelo prateado no saquinho plástico. A biografia manuscrita, guardada na biblioteca, ao lado dos mais renomados autores. As digitais carimbadas nos papéis alvos. Fotografias de todos os ângulos e a foto da que bem amara...

O futuro saberia seu nome. (será assim, Senhor, será?)

- Óh Raimundo, o sol queimou teus miolos? - exclamou Cícero.

Levantei-me do chão; o bichinho antigo, cheio de dentes e retorcido, dormia aos meus pés (sim, queimou meus miolos, queimou pra valer!). O perfume de jasmim e azaléia ainda rondando as narinas.

- Não sentes o cheiro gostoso de flor? - perguntei.

Não, ele não sentia, ou não queria sentir. 

O doutor mandara que eu vendasse os olhos de novo. Desta vez como amigo. Não nos esqueceríamos um do outro, sabíamos disso. Coloquei a venda de bom grado. Não queria mais ver, não queria mesmo. Não queria saber onde estava o túmulo de Manoel Tobias. Em que lugar do sertão sua casa estaria entranhada. 

Pus o pano bem apertado. Depois fui conduzido para o vilarejo num jipe (como dava voltas e sacudia!), junto com mais dois cabras. 

Nunca mais soube de nada, da caverna ou do doutor.

Só sei que a obra foi concluída. O serviço acabara. Manoel Tobias descansava em paz (aprisionado em sua própria arapuca).

***

Depois da janta, depois de por os pés para cima e dormitar um pouco, dei um beijo na mulher e voltei ao fundo do açude, um poço de escuridão. Uma boa vela, plantada no interior de uma lata, deu a luz necessária à empreitada. A enxada amiga como companheira. 

As mãos doíam mais do que nunca, porém o sino tocava. O "béim-béim!" latejante; aquele grito agudo que a enxada dera me chamava (o ouro, o ouro!).

Fui cavar no meio da escuridão. 

Aquele ponto amarelo de luz trêmula me denunciando e guiando nas trevas (o açude natimorto). Achei o lugar de cavar. O cheiro de flor não existia mais. A lua cheia protegia os miolos que o sol havia calcinado. 

Apaguei a vela (fugindo dos dinossauros) e pus-me a desenterrar as camadas (béim! béim! béim!).

Uma chapa metálica ia emergindo do solo. Metal contra metal. A lâmina da enxada riscando o aço (perdão Manoel Tobias, perdão!). E o jipe foi sendo despido de terra. 

O jipe. O doutor enterrara o jipe, o porque eu não sabia. Suspirei de alívio. Melhor assim, que o mausoléu ficasse em segredo. Devia estar mais abaixo, em algum lugar dentro da amplidão do buraco.

O fato é que voltei para casa feliz e resolvido. 

No dia seguinte deu-se a coisa mais estranha, não sei se boa ou má. Não teve trabalho, a chuva caía a cântaros. Um verdadeiro milagre. 

O açude enchia d`água e um grande lago se formava. Cícero e os cabras tomavam banho entoando Salmos; os dinossauros se afogavam e os peixes secos no seio das rochas sentiam de novo o gosto da vida. 

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