VIAGEM ATRAVÉS DO SONHO
Vera Vilela

Fecho os olhos e lá vou eu para mais uma viagem distante. Desta vez nem tão longe assim, talvez 100km.

Chego até uma casinha simples rodeada de árvores, flores, nem tão bem cuidadas mas com muita saúde. Os pássaros se deliciam na sombra, nos frutos e nos néctares da paisagem. Alguns especiais como os beija-flores amigos que lá encontram seu alimento preparado com carinho por sua benfeitora.

Abro o velho portão que demonstra a falta de um marido por aqui. Quebrado, soltando tábuas,de madeira já um pouco velha, se esconde atrás das trepadeiras em flor que se esparramam por toda a cerca. Um velho cão corre ao meu encontro como se me conhecesse, abanando o rabo em sinal de aprovação, me recebendo e encaminhando para dentro da casa.

Meu coração por um instante se acelera pelo momento que virá a seguir, paro um pouco, me recosto na cerca florida na sombra deliciosa da frondosa árvore.

Lá dentro me espera uma pessoa. Uma mulher calejada pela vida, judiada pela natureza, com cicatrizes fortes num coração imenso. Não poderá vir até mim por impossibilidade física, mas tem estado muito presente comigo ultimamente. Sua experiência de vida muito tem me ensinado, tenho marejado os olhos pelos seus escritos, que na maioria das vezes foram vividos.

Minha vinda hoje não é apenas um conhecimento físico entre duas mulheres amigas, é um motivo muito maior que isso, pois já nos conhecemos intimamente através de nossas almas. 

Meu objetivo é admirar sua escapada, sua inspiração mensal. Será hoje o grande dia, ela recostada na velha janela, com os olhos arregalados e direcionados ao horizonte ainda azul claro que, aos poucos se tornará azul escuro e com ele virá o grande presente que sua janela mensalmente lhe dá.

Ah! Sensação de noite de natal de minha infância, sensação de banho de cachoeira em dia de calor, sensação de mergulho no mar pela primeira vez, sensação de cheiro de café de manhãzinha preparado por minha velha mãe, sensação do primeiro beijo.

Perco-me em pensamentos, sensações e cheiros e não percebo o dia que já se pintou de noite, olho em direção a janela e vejo a amiga, olhos brilhantes, braço estendido ao alto e uma expressão de alegria, de conforto. É como se de repente ela fosse invadida pela energia vinda de um brilho diferente que ela admira, o brilho que me fez viajar até aqui.

Vejo claramente sua transformação. Seu rosto de senhora se estica delicadamente, vejo o rubor aparecer no rosto antes sem cor. Seus lábios se enchem e se transformam, suas mãos se amaciam e se esticam mais ainda para alcançar a luz. Ela é agora uma linda mulher, uma jovem mulher e seu olhar apaixonado.

Sinto-me paralisada com a cena e ao mesmo tempo tocada por toda aquela energia que emana daquele brilho intenso. Preciso olhar, preciso saber, quero ver, quero sentir também.

Não consigo me mexer, meus músculos não obedecem aos meus comandos e permaneço ali extasiada, em uma hipnose involuntária.

O brilho aumenta e a jovem mulher vai para fora, está com roupa de baile e vejo chegar até ela um cavalheiro, coloca uma de suas mãos em sua cintura, com a outra segura sua mão e começo a ouvir uma música angelical, uma partitura desconhecida, sons que penetram na alma.

Os dois começam a rodopiar no mesmo instante, parece uma valsa. Riem muito, mas não se falam, dançam animada e carinhosamente. De repente percebo que não estão com os pés no chão. Eles levitam no círculo brilhante que se formou, sobem e descem sintonizados à música. Ela agora é livre, não existe mais o chão, a terra castradora de seus movimentos, a magia se expande aos poucos, o círculo vai aumentando e chega até e através de mim. Sinto-me levitar e sinto uma imensa paz invadir minha alma. 

Chego até os dois e aceito as mãos que me oferecem e dançamos a três, é uma sensação inusitada. A música aos poucos vai ficando mais longe, sinto-me mais pesada e descendo bem devagar. Olho agora para o céu na direção da luz que nos envolveu.

Uma nuvem aos poucos encobre a Lua na mesma medida que seu brilho nos abandona, uma ponta de tristeza toma conta de mim, mas minha amiga me previne.

Não chore por ter acabado, maravilhe-se pelo que teve, poucos puderam sentir esta força. E lembre-se amiga, este espetáculo eu tenho apenas uma vez por mês, quando a Lua se enquadra na minha velha janela. 

E assim nos despedimos com um forte abraço, já não há mais o brilho, a Lua, o cavalheiro, os beija-flores, os cheiros, mas existirá sempre o momento vivido, este nunca desaparecerá.


Dedico este conto a Sal - grande amiga, escritora, dona da janela, da carta e do texto - Meu último baile - que me inspirou: 

“Vou ao quintal uma vez por dia, levar a comida dos pássaros. Mas de onde fico - no micro - vejo o meu verde, os meus beija-flores, a festa que preparei para mim. E, uma vez por mês, vejo a lua de minha janela. No dia em que você vier, vou ver a lua lá de fora, por seus braços. Vai ser maravilhoso! Já pensou o que é um poeta que não vê a lua quando tem necessidade?”

Olympia Salete Rodrigues

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