COMO UM SILENCIOSO CAÇADOR
Bárbara Helena

Olhou-se no espelho sem ver seu reflexo. 

A noite era escura e triste , como sempre. 

Vestiu a capa de peles e apanhou as luvas. Fazia frio ainda. Ainda. Ela estaria esperando na porta. Era esta a hora perfeita.

Sou vampiro, pensou. E não era um pensamento desagradável. Bateu levemente nos dentes. Duros, brancos, como os dela. 

Abriu a porta e o vento entrou derrubando papéis e fazendo balançar o pesado lustre. 

Não havia ninguém lá fora, só o mesmo cachorro negro, com os olhos vermelhos, inflexíveis.

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Ela caminhava pela névoa.

As árvores altas fechavam o caminho, compridas e finas e a bruma fazia com que se perdessem na intimidade branca acima dela. Pedaços esgarçados de gaze alva enganchavam-se nos galhos e uma luz misteriosa jorrava dos espaços entre os troncos escuros. 

O frio agora parecia mais intenso, ou era efeito da paisagem cinzenta, do sombrio postal por onde andava como num sonho. 

Sabia que chegaria um dia a algum lugar, mas não tinha certeza. Na verdade, não tinha certeza de nada, nem mesmo de caminhar pela floresta sombria. Ás vezes parecia que continuava em casa, cercada pela segurança das amoreiras floridas. 

Tinha que continuar, era imperativo. 

Um uivo cortou o silêncio opressivo. Alto, lamentoso. 

O cachorro negro estava ali. E o uivo não partira dele, com certeza.

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Resistiu ao impulso de voltar para a segurança do vestíbulo. O que fariam os seus iguais numa situação como esta? Arreganhou os dentes ligeiramente para o cão.

Não obteve nenhuma reação. Ele continuava parado, apenas olhando.

Resolveu ignorá-lo e fingiu olhar o relógio. Ela estava atrasada o que não era habitual. Também, com um tempo deste... Observou a floresta escura ao redor dele, a névoa que fazia sumir as árvores, tornando a paisagem uma espécie de sonho. A única coisa totalmente nítida eram os olhos vermelhos do cão. 

Chamou-o meio sem-jeito, sabendo que não era de apelos. Logo desistiu. Ficou ali desamparado, esperando, diante do seu espectador silencioso.

Talvez seja um vampiro também.

O pensamento não era nada consolador. 

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O cão ficou parado a sua frente, depois, lentamente começou a andar até se perder na bruma

Ela continuou como num sonho, a nevoa se tornando mais pesada a medida que caminhava. Já não conseguia mais distinguir o caminho, nem mesmo sabia se houvera um caminho porque agora tudo estava indistintamente claro e escuro, uma paisagem de sombras que se tornava mais difusa à medida que a noite caia. 

Preferia que o cachorro aparecesse de novo, com seus olhos escuros e vigilantes. Uivos pareciam cortar o silêncio. Eram distantes e tristes.

O cansaço tornava as pernas pesadas mas não podia parar.

Por que não podia parar? Já não lembrava. Alguém esperava por ela em algum lugar. 

Vampiro – diziam seus nervos exaustos.

E os pés continuavam apesar de tudo.

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Por que ela demorava tanto?

A névoa não permitia distinguir se estaria próxima, talvez ao alcance de um grito. A garganta contraída não deixava passar um som. Os dentes trincados, alvos, na boca um gemido surdo. 

E o maldito cão continuava ali. Apenas fitando-o fixamente, uma estátua negra e brilhante com olhos vermelhos de fera. 

Caia a noite, devagar, e seu coração sobressaltava-se. 

Odiava a espera tanto quanto ansiava pelo encontro.

As sombras cresciam entre as árvores e a névoa parecia mais densa, escura, profunda. Aos poucos, tudo foi sumindo na treva noturna. Só a luz que emanava da porta e o brilho dos olhos do cão iluminavam a cena.

De surpresa, sem se mover, o animal uivou tristemente.

Alguém emergia da escuridão.

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Os uivos agora obedeciam a um padrão e ela sabia que devia segui-los.

Era alguma coisa a que se agarrar na imensidão da dúvida.

Por que andava em direção ao que não conhecia, seguindo uma bússola que não pedira? Por que insistia no caminho apesar?

A névoa se tornara mais densa e os uivos mal eram ouvidos como se escapassem de um mundo de algodão.

Mesmo assim continuava porque o inevitável era este. Não havia como escapar ao seu destino, ainda que não soubesse qual era. 

O chamado do cão ficou progressivamente mais alto e, aos poucos, a fumaça branca que a envolvia começou a subir deixando aparecer as árvores sombrias, ornadas de fiapos de gaze branca, recortadas contra uma ligeira claridade que a precedia.

Então ela o viu. 

E o cão estava lá.

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Sentia a cabeça pesada e um desanimo espesso se abater sobre ele.

Queria voltar para a sala com seu fogo tranqüilo, mas as pernas não obedeciam e o olhar do cão o hipnotizava no mesmo lugar.

Aconchegou o casaco no pescoço.

Havia um vulto ainda indistinto entre as árvores brancas de bruma, na noite sombria. 

Seria ela?

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Estava lá. Parado. Como o destino inexorável. Caminhou para ele com as vestes brancas, a pele branca, o sorriso branco de quem não tinha mais certezas nem caminhos. 

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Era ela. Veio para ele como a silenciosa morte contratada. Como a certeza insípida do amanhã conhecido. 

Caminhava entre as árvores e a névoa e agora era real.

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Seus dentes deslizaram no pescoço alvo, a boca se cerrou na jugular pulsante. Ela se abandonou como uma presa fácil. Ele sorveu a vida que procurava. Ela entregou a morte que trouxera. 

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O cão uivou ainda uma vez e, lentamente, se afastou. Completara seu ciclo. Abrindo as negras asas flexíveis, voou no meio da bruma como um silencioso caçador. 

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