UMA ESTRADA
Marina Salles

Seguindo uma ordem expressa, deitamo-nos sobre os colchonetes azuis e extremamente finos, de utilidade duvidosa, e seguimos um conselho subjetivo de 'permanecer' até segunda ordem. Ela colocou a música para tocar, uma música clássica ondulante e morna que eu desconhecia até então, e não posso mesmo dizer qual pois não tive como prestar atenção. Acomodei-me como pude no colchonete e esperei. Vendo todos deitados, a professora pediu que fechássemos os olhos - no que foi prontamente atendida -, e começou a falar, tentando com certo esforço manter a voz tranqüila e suave. "Relaxem. Fechem os olhos e relaxem." Acho que foi essa a primeira frase que disse quando deitamos e começamos a fechar os olhos. Em seguida, ela explicou calma e lentamente como deveríamos nos deitar para que ficássemos totalmente relaxados e pudéssemos nos concentrar na mente, muito longe do corpo. Eu não conseguia de fato acompanhar suas palavras, mas dessa parte me lembro que todas as partes do corpo ficavam encostadas no chão, as mãos viradas para cima e a cabeça equilibrada e alinhada com os ombros. Apesar disso, deixei meus joelhos bastante acima do nível do solo e acomodei minhas mãos e minha cabeça de uma maneira mais confortável, afinal, não era possível que eu tivesse que relaxar sem conforto. Deixando esses detalhes de lado, a voz que nos guiava, serena e ligeiramente rouca, repetia inflexível: "Relaxem... Vamos, relaxem... Relaxando os pés... Pense no seu pé. Visualize o pé. Relaxe cada músculo do seu pé. Não abram os olhos... Agora se concentre nas suas pernas... Deixe as pernas moles... Relaxe cada músculo das suas pernas... Imagine suas pernas... Elas estão completamente relaxadas..." Enfim. Depois de nos fazer relaxar também a barriga, o diafragma, o peitoral, os ombros, os braços, as mãos, o pescoço e a cabeça (nessa ordem), finalmente ela pareceu se convencer de que estávamos suficientemente relaxados e iniciou o exercício em si. 

Em primeiro lugar, ela pediu que imaginássemos que estávamos flutuando, flutuando, flutuando, bem longe da sala de aula, longe do colégio, bem longe de São Paulo, muito longe do Brasil e da Terra. Flutuando, flutuando... Aos poucos, sua voz tomou conta da minha mente, e suas palavras ocuparam minha realidade vacilante. "Imaginem agora uma estrada... Uma longa estrada, muito longa... Como é essa estrada? Imaginem... ela é bonita? É feia? O que há ao redor dela? Imaginem...". Eu olhei a estrada que se formara à minha frente. Essa era a primeira vez que fazíamos esse exercício, e minha estrada, ainda sem função e sem destino, formou-se simples, estreita, sem nada ao redor. Amarela no verde. Era longa. Longuíssima. Infelizmente, não prestei atenção nela desta vez, a única em que poderia andar sobre ela. Apesar de tudo o caminho se formara entre minhas nuvens, e o gramado ao redor dele estendia-se à minha frente. Seguindo uma voz afetada, pisei naquele plano estranho e segui.

"A estrada leva até um lugar, aquele lugar só seu, aquele seu recanto secreto..."

Outras coisas se sucederam. A trilha, cada vez mais estreita, acabava subitamente rente à orla de uma grande e escura floresta (em oposição ao dia claro lá fora). Num ponto específico desta floresta ficava o meu recanto. Não havia nada de especial nele, e em nada ele diferia-se do resto, mas era lá meu canto e por lá fiquei. Nesse canto sugiram plantas, figuras, uma 'cã' dourada muito alegre e uma palmeira muito alta sobre a qual eu arranjei algumas almofadas coloridas. Tranqüilamente a professora nos pediu que voltássemos. Saí da floresta com o coração leve e pensando na 'cã', e novamente não prestei atenção na estrada que seguia. Mas compreendi uma coisa: na outra ponta, além do fim, havia um abismo profundo e escuro. 

Quinze dias depois voltamos à sala zero, e novamente a professora pediu que deitássemos, depois de ligar a mesma música de vez anterior. Desconfortável, joguei o colchonete para o lado e me acomodei, e, depois de todo um extenso processo de relaxamento, me vi novamente flutuando entre nuvens brancas. Desta vez, a estrada não surgiu próxima a mim, mas muito distante, lá embaixo, e eu pude apenas flutuar sobre ela até o coração da floresta... ou seria o meu coração? Senti desta vez que a estrada era viva, mas não podia precisar como. Enfim, outras coisas aconteceram (o lugar ganhou quadros e uma caverna nasceu sob a mata) e voltei à estrada. Flutuando, flutuando.... Na última vez, me lembro de ter novamente não conseguido pisar na terra. Apenas observei-a de longe, sem conseguir me aproximar. Se eu me movia em sua direção, ela parecia recuar, fugir de mim.

Aquele dia foi mais estranho. A voz da professora soava estranha em meus ouvidos. Cheguei até meu recanto e desci até a palmeira, onde me foi dada uma folha em branco, onde eu poderia escrever minhas qualidades e meus defeitos. Aí então aconteceu o mais estranho. Ela tossiu. Normalmente, isso não era problema. Mas ela estava guiando meu mundo, e esse brevíssimo momento de desconcentração causou desgraças notáveis. A árvore em que eu estava começou a queimar do nada, e o fogo se alastrou muito rapidamente. Pulei para longe, salvando apenas a folha. O resto, deixei queimar. Parecia-me não ter importância. Totalmente esquecida do que acontecera, continuei pensando em minhas dificuldades, e me lembrei de três árvores que esquecera de plantar no pequeno jardim. Peguei as sementes, plantei a primeira... Tranqüilamente a professora nos pediu que voltássemos. Eu não quis. Ainda não tinha terminado. Senti uma força incrível me puxando para fora, mas resisti. Plantei a segunda árvore. Havia uma luz, que a voz dizia que era a minha luz, muito clara, mas ela estava contra mim, ajudando a puxar-me para fora...! Finalmente, cedi. A força me puxou violentamente, me fazendo bater com o próprio ar rarefeito. Senti entretanto um baque muito mais profundo e, diga-se, doloroso. Procurei em mim um ferimento qualquer, e minhas mãos me mostraram uma flecha em minhas costas. Uma flecha... Assustada, olhei ao redor. Só então compreendi o que era aquilo que havia na estrada que à princípio eu não reconhecia. 

A trilha artificial e intacta parecia agora muito mais hostil. Sob um céu nublado, revelaram-se no verde faces, sombras, monstros que me perseguiam e me procuravam com maldade; meus próprios medos, materializados em formas cruéis onde parecera não haver lugar para eles. Entre eles, formigueiros altos como montes explodiam destrutivamente. Corri. Os Medos me perseguiram, velozes, por todos os lados e de todas as formas, voando, correndo e até nadando, em um mundo que eu não conhecia de fato. Em desespero, tentei voltar para a floresta, correndo com todas as minhas forças, pequena naquela imensidão verde e azul, mas a floresta parecia se afastar de mim, e eu parecia estar correndo em falso, a grande força e a Luz me puxando na outra direção. Os Medos logo me alcançariam... Desisti, e tentei fugir para o outro lado, ganhando mais velocidade com o impulso da Luz. Porém, esquecera-me do abismo escuro que havia do outro lado. Freei, saltei, e sabe-se lá com que forças consegui voltar ao chão e manter-me viva. Os Medos, indiferentes ao tapete rubro-negro que cobria seus pés, com passinhos velozes, cercaram-me. Desesperada, escolhi uma direção qualquer e, brandindo cegamente a flecha de ferro que retirara das costas, como uma espada, contra os monstros-sombras-formigas que se amontoavam, confiei toda a minha vida em um único movimento, o de me jogar sem reservas nessa direção e correr com todas as forças, até onde minhas pernas me levassem.

Subitamente parei, ao pisar novamente numa faixa estreita amarela em meio ao verde estonteante da paisagem. Confusa, ensaiei alguns passos pelo caminho estranho. Novamente na estrada. Novamente sem função e sem destino. Abandonada ao acaso. Perdida. Completamente perdida em um mundo estranho e interior. Sozinha sobre um colossal formigueiro. Olhei ao redor. Aqui e ali pequenos agrupamentos de árvores começavam a transformar a paisagem. Adiante, uma floresta de árvores altíssimas se recortava contra o azul profundo do céu. Atrás de mim os Medos já haviam encontrado minha pista. Segurei com mais força a flecha, o único objeto que eu poderia reconhecer. O único que era consciente em mim. E agora, minha consciência alertava minha infeliz situação. Perdida, perdida, perdida...

Um urro desesperado ecoou nas montanhas-fomigueiro. Completamente perdido.

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