ANDARILHO
Míriam Salles

Onde vão os andarilhos desta cidade?
Estão sempre por aí em cada bairro.
Sempre andando pela contramão da vida
no sentido contrário, contramão da avenida.

O que vêem os andarilhos desta cidade?
Estão sempre procurando pelo chão.
Quase nunca procurando pelo céu,
quase sempre vasculhando o infinito.

A estrada sinuosa parece não ter fim.

Por certo que não tem. Todo fim pressupõe um recomeço. A cobra que morde o rabo. O infinito.

A margem da estrada, casas simples, casas suntuosas, barracos, contam as estórias das pessoas que as habitam. Aquela com florzinhas delicadas nas jardineiras decerto pertence a uma pessoa também delicada. O barraco descuidado, sem pintura, denota descaso ou usura.

Algumas pessoas acenam quando passamos, num cumprimento formal há muito desaprendido pela maioria. O que será que pensam? O que querem? Que segredos escondem sob a máscara de impessoalidade?

Olho a menininha de olhos negros, vivos, que me dá adeus enquanto pula a corda num pé só. Quais serão seus sonhos? Será que imagina sair um dia pela estrada afora e nunca mais voltar? Será que sonha em se tornar um anjo e voar?

E aquele senhor, cuja idade é imprecisa, mas que parece carregar muitas vidas sobre os ombros curvos? O movimento da cabeça ao cumprimentar é quase imperceptível. Os olhos semi-cerrados parecem dizer "cuidado comigo, tenho medo". Em sua postura, um recado: "seja bem-vindo".

Mais adiante um grupo de homens num boteco nos olha com galhardia. Tão valentes quando juntos, são tão frágeis quando em minoria. Levantam as cabeças ao mesmo tempo que levantam os copos num brinde não expressado. Parecem dizer "entrem, mas não fiquem a vontade. Esse é nosso território".

Ali, onde se reúnem diariamente para relaxar da lida da vida, tornam-se reis do mundo, compensando o dia-a-dia onde se submetem aos patrões, donos da terra que lavram, mas que agem como donos das almas dos que os servem.

Depois da curva fechada uma moça solitária numa casinha isolada das demais. Deitada na única rede na varanda de janelas de cortinas rendadas e cercada de boninas e margaridas do campo. Quais serão seus ensejos? Que sonhos sonha essa quase mulher quando deita a cabeça no travesseiro? O que vê na estrada que a olha todo dia? Esperará talvez que na curva apareça o homem que a levará embora para uma vida nem sequer imaginada? Alguém que quebre essa rotina inevitável namorar-noivar-casar-procriar que se espera para uma moça do lugar? Será que algum dia almejou em subir nas montanhas altas que podemos ver ao longe?

Olho para a frente e vejo uma encruzilhada. O sol brilha forte e traz lágrimas aos meus olhos. Finjo que é a luz que as provoca. Olho o horizonte e percebo que tenho que decidir meu rumo. A estrada da direita leva ao mar, a da esquerda às montanhas.

Abaixando a cabeça, peço a opinião de meu cão, que me encara sério à espera da decisão. Ele entende minha questão, como sempre fazem os amigos que sabem se comunicar sem palavras. Abana o rabo e segue em direção ao mar. Que seja. Também estou com vontade de me lavar no sal da terra e tirar de mim o peso do mundo.

Seguimos andando, os dois. Eu, perdido nessa estrada da vida, ele a me guiar nos caminhos da inconsciência.

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