CONFISSÃO
Reinaldo de Morais Filho

Nunca quis ir a Cabo Frio.

Mas eu comprei um carro e não sabia onde escondê-lo em um feriadão, nem sabia como usá-lo de uma outra forma que não indo longe.

Não tinha dinheiro para ir a Búzios. E Cabo Frio era próximo.

Arrumei cinco blusas na mala e vesti a única sunga azul que arrisquei comprar. A bermuda era a marrom com flores amarelas que vestia quando ainda não pensava em viajar.

E chegando lá um barco virou.

Sinceramente, pensei primeiro em voltar com a cara-cheia-de-gim-com-tônica de quando ouvi a notícia. Mas achei de bom grado ficar para ajudar se preciso fosse.

Não contaram com a minha ajuda. Talvez porque meu carro não alcançaria a região do acidente - pelo óbvio motivo desta estar alagada. Talvez porque a água tônica não resistiu ao álcool do gim e me deixou adormecer bêbado.

O que importa é que não perdi o carro, já que dormi de porta aberta esperando que um marinheiro gritasse 'homens ao mar'. E nem a bateria descarregou por completo - pois dormi ao som de Led Zepellin para não perder a concentração na vida.

Contudo, enquanto me refazia da bebida e do sono, devo ter cochilado na curva exata do retorno e me deixei estar perdido em um bairro tranqüilo da cidade, provavelmente distante do meu apartamento.

Estacionei o carro embaixo de uma árvore larga que parecia uma amendoeira, de tronco marrom e folhas amarelas, semelhante à minha bermuda.

Mas, o que importa é que eu estava de sunga azul, despido da calça que deve ter ficado na água onde me joguei, vez que estava molhado dos pés à cabeça como aquele frango branco que mergulhava no córrego que escorria perto da calçada.

E eu sempre escutei que as aves não gostavam da água; nem mesmo aquele pássaro que comia peixes e sempre conseguia os catar em um vôo rasante e perfeito que eu sonhava em realizar um dia quando realizasse o primeiro sonho de todo o homem que é voar.

Porque se eu voasse e pudesse arrancar um peixe da água, por exemplo, eu teria sido bem mais útil no salvamento do que fui tendo que pular bêbado na água e sendo socorrido por não saber nadar.

Se eu voasse, ao menos, nem teria que beber para cair na água, não teria sequer que dirigir até Cabo Frio sem querer estar naquele lugar.

Então, voltando ao frango - que esse eu pude ajudar já que, realmente, não gostava de água e estava sendo carregado pelas sobras da chuva forte que havia desabado horas atrás - eu, que estava mesmo perdido enquanto não restabelecesse a memória, aproveitei um fósforo no porta-luvas e fiz uma fogueira.

E do fogo ao frango-torrado foi um passo, porque sempre fazia a fogueira do churrasco e estava acostumado, além de faminto.

E matei o frango, e a fome, e acabei eu mesmo dormindo até o dia seguinte no lado esquerdo do carro, de sunga mesmo e sujo de sangue do frango, e bêbado de gim.

Acordei com cara de assassino, o frango com cara de menina, daquelas que brincam nos córregos depois da chuva, a fogueira com cara de sacos enfiados na mala, e os ossos do churrasco, carne vermelha ainda inteira dentro das sacolas.

Então, lembrei que o frango tem carne clara e que eu perco a memória e logo torno a lembrá-la; e que a menina que matei era menina um pouco mais velha do que a menina que imaginei.

E sabia que teria que sair de Cabo Frio sem avisar meus amigos para me esconder junto com o corpo, com medo de ter que voltar para finalmente encontrar todos os caminhos para matar a menina certa, e não sair por aí matando qualquer um depois da primeira dose de água tônica-pura, sem-álcool e sem-gelo.

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