CEREJAL
Rosi Luna

Os pés estavam juntos no sapato de verniz preto. Pensei que com eles chegaria a algum lugar. Meu pedaço de caminho a seguir. A rota cortada por amores em pedestais. Ele simplesmente beijava meus pés como se eu fosse princesa. Nada importava só os pés pequenos com os dedos em fila. Aquele olhar buscando perfeição na brancura e no róseo das veias. Ele beijava os pés como se eles fossem meus olhos. Pés não enxergam, só sentem cócegas. Um louco que lambia minhas extremidades. Uma mulher se contorcia com tamanha espontaneidade. 

Nada planejado para se afundar em desejos. Paixão em súbitas correntes. A ambiência daquele lugar que foi o encontro. O biombo com flor de lótus com detalhe de jade. A cadeira falsa de Imperador. Ele na minha frente com postura de superioridade. Eu com olhar casto de gueixa com sobriedade. Pronta pra satisfazer seus desejos cheia de vontade. O quadro do cerejal em flor e as juras de amor em conta-gotas. A obsessão dos pés ia subindo as pernas. Com graça as pernas eram compridas como as de uma garça. 

Ele não cansava de olhar a fenda do vestido. O bicho da seda envolto num corpo de uma falsa chinesa. Uma ocidental brincando de outra cultura. Os palitinhos no cabelo. A nuca descoberta. O perfume tão enebriante que nunca mais o nariz queria parar de cheirar. O jantar de rolinho primavera e tantas iguarias coloridas. A vela no copo de vidro vermelho queimando. A pouca luz e o encanto que seduz. A boca carmim e o brinco de estrela. O sopro uivando nas orelhas. Zumbido errante de alarido amor. Clamor de corpos incendiados. 

A rótula do joelho esculpida com perfeição escapando na fenda do vestido. E o olhar quente dele devorando cada pedaço como nacos de carne tenra. A música suave e o ballet em palco de colchão de espuma. Sexo no travesseiro. Beijos no chuveiro. Vá pra China ele dizia.E eu rodopiava o mundo se preciso fosse para amá-lo. Não tenho distâncias. Tenho pés para percorrer e uma utopia a seguir. Uma vontade galopante de desejos sussurrantes. Mandíbula voraz com dentes de amor mordente.

Meu vestido de seda chinesa, meu sonho de realeza. Aquelas florzinhas salpicadas. Minha alma encarnada. Nunca me senti tão bonita. O pudor da gola de padre com três botões com forma de flor. Na perna de fora o talhe mostrava sem piedade uma coxa delineada. As mãos dele eram só carícias. Campo minado de malícias. Ele não parava de sussurrar que se apaixonou pelos meus pés. Em que pé estava essa conversa? Pé de cereja, pé de mato, pé de vento. Os pés dançavam. Olhos com delineador. Delineada imagem de sombra na parede. Ajuste de sedução. E ele querendo tomar meu coração. Eu não deixaria. Meu pé de insensatez não tem dono. Não amo ninguém. 

Deixo que me amem por poucas horas. Minhas rendas o seduzem - veludo de texturas carinhosas. Minhas mãos percorrem seus pêlos. Nua em pêlo. Dança particular de sua retina. Minha sina esperar que um dia alguém me toque. Toque de Midas - ouro bordado do homem que estava no pedestal. Eu simples súdita longe do alcance. Olho de relance. Fina iguaria de um banquete que nunca vou saborear. Coisa da China e uma muralha a nos separar.

Vestido caído no chão. Estrelas cadentes na cortina. Um batida de sino e uma sina do dedo no umbigo. Ele subindo no cálice dos meus seios. Meus anseios sem arreios todos deliberados. A loba solta da matilha. Afundava na minha floresta e beijava minha testa. A renda da calcinha jaz entre lençóis. Despida de pudores. Meus pés trêmulos. Ele se declarando. Rodava meu corpo. Viagem mapa-múndi. No roteiro final acabou amando os meus pés e a minha cabeça. Ele viajava e eu procurando o mapa. Nunca cheguei a lugar nenhum. Só ao caminho das palavras prazerosas. Amei o papel. A miragem do homem inventado.

A poesia que misturava na prosa. A rosa sêmen do meu torpor. Fio de tecido. Minhas teias que seguravam um homem pelo pensamento. Viúva-negra presa na meia cinta-liga. Aranha que arranha as costas das encostas amorosas. Madrugada enluarada. Pés na estrada. Os ponteiros marcam 3 horas. Fim da noite de amor. Meus pés precisam partir. Não o amo mais, inventarei outro homem amanhã que durma comigo a noite toda. Quero encontrar um cerejal em flor, quero um amor. Quero o desejo carnal que dure pelo menos até a lua desaparecer. 

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