MATRIX VERSUS ESTAÇÃO CARANDIRU 
Alberto Carmo

Matrix Reloaded, dos Wachowski, está prestes a invadir a Paulicéia. Já se prevê grande pisoteio de Aces, Olympikus, Reeboks, Nikes e Misunos nas filas dos shoppings - recorde de bilheteria na classe média, certamente. 

Na outra ponta, Estação Carandiru, do Babenco, chega aos quatro milhões de espectadores. Deles, um milhão é a turma que vidrou no Matrix. Os três milhões restantes, segundo Hector, são das periferias. O diretor declarou que isso prova que os nossos irmãos periféricos também gostam de cinema, bastaria reduzir o preço do ingresso de 12 para uns 4 reais. 

Será mesmo que, a 4 reais a unidade - leva três, paga dois - os mano e as mana, as mina e as galera, iriam assistir ao Matrix também? Há controvérsias. Dada a exclusão digital, como é que o garoto da Cidade Tiradentes, lá onde as botas do Judas foram comidas como bife por algum mendigo, vai entender saltos gigantescos, aberturas de pernas que humilham qualquer contorcionista dos velhos, e já quase inexistentes, cirquinhos da periferia? Efeitos especiais, você diria. A mais nova mania dos internautas, e de alguns intelectuais que viram o filme como "algo maior que um mero blockbuster", segundo o jornal. Ao que me consta, o máximo em efeito especial de que os jovens excluídos têm conhecimento são balas perdidas e crack. Nem os antigos 286 chegaram a eles ainda. Portanto, creio que Matrix não seria tão "cult" no subconsciente dessa turma. Matrix é um fenômeno da classe-média computadorizada, e de Pentium III ou versão superior!

Que um milhão da classe-média estejam ajudando na bilheteria de Carandiru é compreensível. Muito provavelmente são os intelectuais e sua prole, visto que intelectual adora pobreza. Segundo o famoso Joãozinho Trinta: - Quem gosta de miséria é intelectual. Pobre gosta é de luxo! O milhão intelectualizado que está indo ao filme do Babenco é a bilheteria-padrão da classe média, os três milhões seriam, como se diz em cálculo numérico, uma bilheteria marginal. Marginal aqui no sentido de "à margem de, além do esperado", não de banditismo, o que não faz muita diferença mesmo. 

É sabido - como já disse um obscuro protótipo de escritor, no caso eu mesmo - que a classe média é mais manipulada que receita na Veado de Ouro - famosa botica de manipulação de Sampa, já em queda-livre em virtude do "franchising". Mas o povão, estariam sendo manipulados pela mídia, esses pobres fregueses dos marreteiros, para assistir ao Estação? Haverá nesse filme, como no Matrix, algo parecido com os óculos da personagem Trinity, um dos inúmeros ítens de merchandising da película? Você vai comprar um par e usar com sua roupa de escafandrista ao fazer cooper no Ibirapuera, confesse!

Só hoje, há duas matérias sobre o Matrix no jornal que assino. Uma no Caderno 2, com o título "O brasileiro que criou os efeitos de Matrix". O rapaz, especialista nos efeitos especiais que tingem seus colarinhos, ou colos, de baba, comenta que "a idéia expressa pelos tais efeitos no filme é fascinante: no mundo futuro, os homens são escravizados pelas máquinas, que criam um mundo virtual que parece real para eles". Realmente, essa é uma sacada que... que... Bem, por certo não é uma sacada que o Joãozinho Trinta teria. A outra matéria está no The Wall Street Journal Americas, do Caderno de Economia, e diz: "A luta de Matrix para salvar o investimento." Ali fala-se dos DVDs, CDs e jogos on-line, que você, ou seu filho, vão adquirir para "salvar" o investimento dos produtores. Também comentam que não querem sobrecarregá-lo, para que você ainda esteja inteiro quando chegar o "Revolutions" em novembro. Fique firme aí. Vá intelectualizando seu bolso!

Imagine uma cena. Ou melhor, imagine o seguinte efeito especial. Duas salas de exibição em algum shopping a meio-caminho entre seu bairro e as periferias. Imagine mais ainda. Duas salas adjacentes. Numa o Matrix, na outra, Estação Carandiru. Terceirize sua imaginação e pense em duas longas filas. Uma, a sua, com um milhão de consumidores. A outra, a deles, com três milhões de candidatos a cidadãos. Todos vocês ali, olhando-se, íris na íris, dentes com aparelhos ortodônticos versus gengivas vermelho-goiaba. Vocês, cheios de grifes da sobrancelha aos pés. Eles, cheios de piolhos do couro cabeludo aos pelos pubianos - chato isso. Eles, com fome depois de juntar a grana para entrar nos corredores escuros do Carandiru. Vocês, deglutindo um Xis-Qualquercoisa, prontos para viajar nas garras imaginárias de Matrix. 

Como seria esse confronto entre uns, que pensam ser a alface-americana-crocante um fenômeno criado pelo mouse, e outros, cujo convívio com o esgoto a céu aberto parece não ter nada de especial em comum, exceto os ratos? Uma guerra de karatê virtual contra capoeira real. Vocês, apertando os botões do celular último modelo à espera de super raios-laser que pulverizam corpos de plástico, contra as cusparadas das bocas banguelas. Ou chamariam a segurança do shopping para plantar um muro virtual que separasse a vergonha das filas? 

Fiquem tranqüilos. Nada disso acontecerá. Porque algum esperto camelô aparecerá de surpresa entre as filas vendendo qualquer coisa que desvie a atenção e acalme os ânimos. Podem ser inocentes cata-ventos com cores vivas para o primo pobre, e tons pastéis para o lado informatizado. Vocês podem pagar com cartão de débito. Eles, só em espécie, qualquer tipo de moeda, desde que seja virtualmente legítima. 

Cata-ventos causam um efeito especial nas pessoas de todas as classes. Assopre sem medo. Imagine-se em pleno asfalto da boa e velha Sapucaí. Pobres e remediados, miseráveis e abastados, todos lado a lado, brandindo seus estandartes giratórios e coloridos num momento único, onde pisamos todos no mesmo chão, onde favelado vira conde no destaque, e classe-média vira povão nas alas. 

Como diria Dóris Monteiro: - E acabar em samba, que é a melhor maneira de recomeçar!

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