COM O VENTO NOS DEDOS
Regina de Souza

Domingo de sol, seis camas quentinhas, 
Lençol, banhos, cheiros, cafés-da-manhã, 
As roupas de missa, bagunça no quarto, 
Mamãe apressada, preguiça...meu Deus! 

Na rua, vizinhos, meninos, meninas, 
Vendinha fechada, velhinhas, velhinhos, 
Fachada do açougue, janelas, vidraças, 
A praça, a farmácia na curva 
O escadão que desce e que sobe, 
São noventa e nove 
Os degraus do escadão. 

Nós sete descendo e contando degraus, 
Meu pai, minha mãe, o vento, mãos dadas, 
Mendigo pedindo e a gente descendo, 
Meninas correndo, descendo e subindo 
E na correria 
Alcançando os dois. 

Lá embaixo a escada acaba -alargada-, 
Um outro pedinte e nós sete seguindo 
O caminho do vento é de terra vermelha, 
Matinho do lado, cachorro vem vindo direto, latindo, 
Que mêdo, ai que mêdo!-diz a menorzinha- 
Pálida, pegando na mão de meu pai. 

O pátio da igreja -à direita também 
Tão grande! É do lado da casa dos padres, 
O cheiro de incenso que vai aumentando, 
Tem gente chegando prá missa das dez. 

Velhinhas de preto entregam o folheto 
Na porta de entrada da igreja lotada
Tristeza- mendigo pedindo de nôvo
E um côro tão lindo de vozes crescendo, 
Preparando a entrada que o padre vem vindo, 
Vem vindo de verde com os coroinhas, 
Vai ter ladainha, ele manda sentar. 

A reza começa -todo mundo junto- 
Oração prá santo, chôro prá defunto, 
Sininho tocando, 
Mocinha olhando o mocinho do canto, 
Meu pai se empolgando, resolve cantar...
Imita a voz do velhinho do lado, 
Num tom distorcido, é muito engraçado! 
Eu morro de rir e olho p´ro altar.

Mulheres estão concentradas na missa, 
O padre velhinho aparenta preguiça, 
A missa é comprida, não acaba nunca! 
Saquinho de esmola, velhinha corcunda, 
Carteiras doando, corações se abrindo, 
Meu sono vem vindo, meu sono vem vindo, 
Meu sono vem vindo e começo a sonhar...

...baixinho, ele chama as cinco e explica que é uma corrida em silêncio, sem briga: - Não façam barulho, não corram, não falem, nem deixem mamãe perceber o que fazem! Precisam chegar bem no pé do santinho de manto vermelho, à direita do altar...e tocar no pé dele com a mão esquerda, voltando em seguida direto prá cá. E quem se puser ao meu lado primeiro e pegar minha mão, será campeã. Darei um presente...um prêmio bem lindo...-surprêsa, segrêdo! (meu Deus, que será?)-Irei entre-dentes contanto baixinho, quando falar dez poderão começar: 

- Um...dois...três ...quatro 

Cinco menininhas querendo um tesouro, 
Andando ligeiras pelo corredor
Não é comunhão, não é confissão, 
São dez pernas finas com os pés bem no chão, 
São cinco cabeças ligeiras fervendo, 
Dez olhos brilhando fixados no altar... 

Não é importante lembrar quem venceu, 
Nem é importante lembrar quem perdeu, 
Só lembro direito que têve euforia, 
Muitos cutucões, trombada, alegria...
E enquanto ele olhava -cantando engraçado, 
Chegou a campeã e o prêmio foi dado...

No final da missa, cabelos ao vento, 
Escadão, preguiça, subimos correndo, 
Eu era criança e não muito ousava, 
Mas meu pensamento pedindo, invejava, 
Meu olho brincava com meu coração, 
Nos noventa e nove degraus do escadão. 

Meu Deus, que tortura!Que coisa mais linda! 
Que raiva...que inveja! 
(que Deus não leia os meus pensamentos!) 
Porque nessa vida eu tudo daria 
Prá chegar lá em cima, prá ter ventania,
Prá pegar na mão aquele catavento.

Mas, como ele fez? Como conseguiu? 
Onde ele aprendeu que a gente nem viu? 
Usou qual papel? De onde o tirou? 
Folheto da missa -a mais velha explicou.

Um vento batendo mais forte, intenso
Mendigo pedindo, menina crescendo, 
Num gesto infantil abriu mão á tempo: 
E entregou ao homem o seu catavento...
Adulto mendigo, maduros segrêdos, 
Sorriu nosso amigo, com o vento nos dedos.

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