A CONSULTA
Alberto Carmo

"Eu sou um médico, não um charlatão!"
(Dr. Valcourt, na novela das sete, ou das oito, ou sei lá de que hora era.)

Virada do tempo, veranico de maio, frente fria e, não deu outra! Alessandra pegou uma dor de garganta daquelas. A notícia veio-me via celular. Sozinha numa cidade estranha, longe dos meus cuidados, dos meus chazinhos, dos meus carinhos e de outras quiromancias herdadas dos meus ancestrais. Entrei em pane feito um velho Constellation invadido pela patota do Bin Laden: - Chamem o FBI, passem um fax pra Interpol! Cadê a Swat que não aparece? 

Minha bonequinha está doente longe de mim? Atirei a primeira Veja e a primeira pedra que me apareceram dentro do liquidificador, joguei a borra do café da tarde, duas pitadas da mala direta do meu banco, um fio de óleo que sobrou do bife à milanesa do almoço, bati tudo em velocidade de cruzeiro e reservei. Cortei tirinhas do Caderno de Economia do jornal, duas rodelas médias de uma bituca de anteontem, misturei com fluido do meu isqueiro e juntei ao preparado anterior. Bebi de uma golada! Muno-me de um piripaque só comparado ao do rei dos Hunos depois do primeiro exame de próstata - aquele que a gente nunca esquece - e continuo a conversa:

- Que poxa! E agora, o que você vai fazer, querida?

- Calma, pai! Eu estou indo até o hospital universitário. Assim que terminar a consulta eu te ligo. Beijo.

Dei mais um trago e acendi o que sobrou da bituca. Pensei naquela bonequinha linda e delicada, que me encantou a vida desde as pizzas que eu mandei distribuir às moças da enfermagem - fez o maior sucesso, embora o cheiro dos quatro queijos tenha invadido todos os trinta e cinco quartos e os aposentos da enfermeira-chefe, que chiou e não provou nem um teco. Que estraga-prazeres! 

- É uma menina! - gritou minha sogra. Supremo presente. Queria tanto essa menina, essa jóia a me enfeitar a vida. E veio muito mais do que eu pudesse ter imaginado nos meus mais sonhados desvarios de contos de fadas. Seria a do meio, como o tempo nos faria saber. 

E, como do meio, herdaria nossos cuidados já escolados pela inexperiência no trato com a primeira filha. Leite de cabra, postura concordante com as melhores práticas dos manuais de "Como Criar Seu Bebê". Cresceu cada dia mais linda. E mais independente, e mais aberta para a vida. É de Aquário, da nova era, dos predestinados a transformar a hipocrisia ruminante que domina nossas plagas em um mundo de gente melhor, cujos olhos iluminam nosso futuro.

Mas hoje, ela assim tendo que ir sozinha a uma consulta com um desses urbanóides fármaco-asfálticos, mercantilistas turbinados pelas propinas dos laboratórios, a tentar descobrir o que se passa sem nunca ter dado ouvidos à vovó? Valei-me, minha Santa Rita! 

Não sei se por desespero paterno, ou se pelo efeito do drinque ingerido, passei a me transferir, virtualmente, ao cenário da consulta.

- A consulta é pra hoje ou pra semana? - sussurrei à atendente.

- Calma, pai. Ele já vai atender.

- Se tiver menos de quarenta não ligue pra nada do que ele disser. É tudo balela.

Depois de ler duas Vejas com Getúlio e Jango na capa, a gentil moça nos mandou entrar. 

- Oi, Alessandra! Tudo bem com você? - disparou um metido a grumete imberbe.

- É a garganta, doutor!

Eu bem que tentei. Mas não deu pra segurar:

- Perdão, excelência. Mas o digníssimo é doutor em quê?

- Sou clínico geral, senhor! - respondeu o pivete. 

- Never mind! - respondi, sem me furtar de um sorriso sarcástico. Dei um cutucão na minha filha e uma piscada significativa: - Esse é daqueles que fez aula de anatomia desmontando alguma Barbie que acharam na periferia. Pensam que tudo é de plástico.

- Pai!

- Tá bom, filha. Seu nome, prezado terapeuta?

- Doutor José! - respondeu o infame, com o peito mais empinado que um baiacu. 

- Vou chamá-lo de Zé, se não se importar. Assim ficamos mais íntimos, aquela coisa de médico da família. E aí, Zé, não vai receitar pincelada na garganta que eu fugia disso mais que de injeção. A medicina progrediu. Que chá você recomenda? Minha mulher costuma usar um lenço com álcool no pescoço também.

- Deixe-me examiná-la. Alessandra, abra a boca. Hum, está inflamada.

- Claro que está! Senão a gente não estaria aqui, e sim curtindo um picolé!

- Pai!

- Pode continuar, Zé. Desculpe o meu aparte.

O rapaz voltou ao assento e passou a fazer os eternos garranchos. Lembrei-me das aulas de caligrafia. O tempo passa, o homem chega à Lua, o Palmeiras vai pra segundona, o pessoal usa roupa do avesso, e os caras continuam na mesma.

- Muito bem! - retorquiu o displicente. Aqui está a receita. Volte daqui a dez dias.

- Como assim? Já acabou? - protestei. - Não vai ouvir o coração dela, os pulmões, a música preferida dela, não vai ouvir nada?

- Receitei um anti-inflamatório, um antibiótico e um analgésico. Pode usar genérico. Passe bem, senhor.

- Passe bem vírgula! Quero mais detalhes! - falei já quase espumando.

- Alessandra, você toma o antibiótico durante dez dias. Os outros conforme eu indiquei na receita. E para o seu pai eu recomendo um chá de camomila.

- Protesto! - e subi na cadeira. Por que dez dias? Qual foi o critério usado para o delta T? O do laboratório, o da receita, ou suas experiências na faculdade? No meu tempo a gente tomava por cinco dias. 

- Os tempos mudaram! - tentou ele numa liminar.

- Mudaram uma ova! E tem mais. O conteúdo da embalagem é mínimo múltiplo comum do que você mandou ela tomar? Ou eu vou ter que comprar duas caixinhas e vão sobrar dois-sétimos de drágeas da segunda que vão ficar às moscas até que ela fique com dor de garganta de novo? Ou o retorno do nosso investimento só virá depois que ela tiver duas dores de garganta e meia? Isso é merchandising, é propaganda enganosa, é...

Saí do meu delírio com o telefone tocando.

- Alô!

- Oi, pai! Já passei na consulta e já comprei os remédios. É garganta inflamada mesmo. Vou tomar antes de deitar.

- Isso, querida. Segue direitinho o que o médico falou. E toma leite antes. E não toma friagem. E...

- Pode deixar, pai. Amanhã estou melhor. Brigada por se preocupar.

- Dorme com Deus, filha. Me liga assim que acordar.

- Ligo sim, pai. Beijos, te amo.

- Te amo, querida.

Dormi meio acordado, engradado na distância. Queria estar ao lado dela, minha preciosa, cantando as músicas que eu inventava pra ela dormir: - Vem, soninho, vem pra Alessandra. Queria acordá-la de manhã, bem cedinho, pra tomar o próximo comprimido. E levar um chá bem quentinho pra ela na cama. 

Sonhei e vi que o desencontro do meu tempo trouxe-me mais que a minha bonequinha adorada. Mostrou-me o generoso Cronos uma mulher sendo formada, uma mulher de Aquário, buscando a vida e sendo plena. Minha menina, que me brinda ainda com o mimo de buscar meus carinhos reservados eternamente a ela. 

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