CÉU INVERTIDO
Iosif Landau

Camisa suada e colada no corpo salientava a fragilidade física, no rosto suor e lágrimas... te amo, te amo... sem cessar, ao seu lado no banco do carro uma arma de grosso calibre, afrouxou mais a gravata, olhou-se no espelho, encontrou um rosto de traços abatidos, pele rosada aparecia nos lugares onde a barba crescida não escurecia, cabelos despenteados caiam em desordem sobre a testa, rugas profundas salientavam o desespero... se ao menos ela fosse mais cuidadosa, por que o bilhete, por que não jogou no lixo, por que não o queimou?... grito silencioso preso na garganta o sufocou ... te perdôo, te perdôo!... ao longe as luzes da cidade cintilavam no escuro... como uns céus invertidos carregados de estrelas... vontade desenfreada de colher dos lábios dela o sentido dessa vida desumana, beijou o vazio, beijou sem cessar, com delicadeza, como se pousasse os lábios num pássaro, vento gélido entrando pela janela o fez estremecer, lembrança da conversa agonizante de há pouco, prolongada por várias horas, um vórtice de acusações e negações, no início não levaram a lugar nenhum, só depois de os amarrar e selar as bocas com esparadrapo, ameaçá-los com arma, ver pavor nos olhos, seu ódio esvaziado... por que não deu certo? sou um covarde... não podia dar certo, foi a pior conversa de sua vida, um total fracasso como era a vida dele... por que a mente nos leva para onde não queremos ir?... rosto dela fixo e imóvel, sem sorriso nos lábios, sem vida nos olhos, até bem pouco, uma semana, nunca tivera dúvidas, nenhuma hesitação ou demonstração de menor indício de remorso, entretanto tudo lhe parecia agora plausível, o rosto dela reapareceu como a vira na cama do hospital, os aparelhos ligados ao seu corpo, seu corpo, não era perfeito, harmonia entre o busto e a bacia, mas ele adorava acariciar seu ventre, os seios imagem perfeita da sua fantasia adolescente, por que voltara de carro? ela dormiu ao volante, diagnóstico da perícia, tudo mentira, o filho da puta era quem dirigia, com certeza engraxou a mão de todos... deixou ela lá, ferida, se tivesse chamado socorro em tempo... agora ela vegetava, ele autorizara o desligamento dos aparelhos... tenho que chegar a tempo, Deus me conceda essa graça... Deus, Ele, já o castigara o suficiente, a cirurgia atingira o corpo dele, sua alma, ele fora tão potente, numa noite, quando ela já deitara, ficou vagueando pelo apartamento, preso a um desejo louco, apalpou-se entre as pernas, nenhum sinal, fantasias eróticas o deixaram febril, andou lento pelo corredor, em direção ao quarto, cada passo nova imagem, ela se despindo como as dançarinas de strip, rebolando seu lindo traseiro, segurando os seios com volúpia, jogada na cama ele forçando a abertura, seu rosto afundado nas macias carnes... vai dar certo, vai dar, nunca ousei antes, ela vai gostar, seremos feli... ouviu gemidos de prazer, empurrou a porta entreaberta, a mulher se contorcia, ficou ali até o último gemido, quase um suspiro, chorou, ela não precisava mais dele... mas inferno dos infernos, tinha que ser com aquele safado?... ele teria perdoado, aceito se fosse com outro... preciso chegar em tempo, preciso... nunca fizera nada de importante na vida, ele não era importante, ninguém daria por falta dele, um inseto sem valor, um contador, historiador dos gastos de ricos, coluna de débitos, de créditos, amontoado de cifras e datas sem significado, rito sem alma, burocrático, impessoal, não criativo, insosso como ele... pensam em mim quando perguntam ,”pode descrever o suspeito?”- “apenas comum, nada especial” sim, nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, idade indefinida, um rosto na multidão... nenhum traço que o distinguisse dos outros anônimos, a não ser um sorriso nos lábios, uma luz no olhar, o seu segredo, queria que todos o olhassem, e também sorrissem, ninguém se importava com ele... danem-se, eu tenho ela, a mais bela, a mais querida, nós nos amamos... nunca entendera, nunca soube explicar, não queria saber, eles se amavam, eram felizes, solavanco do carro o trouxe de volta, olhou de novo para a arma ao seu lado... preciso chegar em tempo, quero ela...

Na porta do hospital largou o carro, entrou correndo, subiu as escadas, dois degraus de uma vez, abriu a porta da UTI, agarrou o médico pelo braço:

– não desligue os aparelhos, não...

O medico ficou calado por alguns segundos:

– saiu do coma, tivemos esperança... fez um movimento com a mão, parecia querer falar algo, me aproximei, ouvi apenas duas palavras, quase sussurro, – tantos desencontros – e logo em seguida...acho que devia saber, estava grávida... 

Entrou na mansão, luzes acesas o guiaram até a sala.

Sete tiros seguidos ecoaram na noite.

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