TEMPO DEMAIS
Jorge Gomes da Silva

Ajeitou o colarinho do casaco, tentando vedar todas as passagens para o seu pescoço que o vento frio conseguia encontrar. Depois esfregou as mãos, uma na outra, em vão, para obter com a fricção o calor que o rigor daquele inverno lhe negava. Olhou em volta pela milésima vez e encontrou apenas os rostos anónimos de quem passava, por coincidência, naquele lugar soprado com gelo gratinado, naquele momento de espera por alguém que teimava em não aparecer.

Tanta gente desnecessária, os outros, diferentes na sua própria ideia, absolutamente idênticos aos olhos de quem não os queria e não os conhecia e apenas os focava na ânsia de distinguir enfim uma cara familiar. De uma promessa se tratava e ela que a cumpria desanimava e gelava como a esperança de que o que havia não terminaria ali. No frio, na espera e na impossibilidade real de se repetir a oportunidade que concedera por piedade no leito de morte da relação que tentava salvar.

O relógio de pulso não mentia, quartzo fiel e ponteiros implacáveis a avançar para o ponto final, do fim da paciência para esperar sem sucesso alguém que se calhar nem a merecia. Mulher bonita e zangada, frustrada por aturar os piropos idiotas e ordinários da maioria dos imbecis que a apanhavam pelo canto do olho e não conseguiam reprimir o entusiasmo juvenil. Gaiatos crescidos, vulgares. Todos nojentos e absurdos na semelhança que cultivavam entre si, machões.

Verificou no painel publicitário os números que o orientavam no padrão escolhido para medir, entre outras coisas, o tamanho do atraso que as fêmeas da espécie defendiam como uma espécie de tradição. Parvas, a maioria, faziam-se caras na demora para entregarem de borla o coração descontrolado que as traía no momento fatal, um pouco depois.

Ele imaginava-se ampulheta, sangue a escorrer num fio, da cabeça para os pés, tempo escoado de um espaço passado para o outro, vazio, que representava o futuro por preencher. Enfiou de novo a cara por detrás do jornal desportivo que o protegia das rajadas danadas, tremia, mal preparado para a mudança do clima e para a revolução que antevia quando, inevitável seria, lhe faltassem os pretextos para continuar à espera de alguém.

As outras pessoas passavam, alheias ao fulano incógnito que as espreitava às vezes por cima do jornal que não conseguia ler. O desconhecido, excepto para si mesmo e para alguém que lhe prometera um encontro, quebrar o gelo e recomeçar. Como se um barco naufragado pudesse por magia elevar-se do fundo do mar e navegar outra vez...

Ilusões que não alimentava fazia tempo, muito mais do que se dispunha a esperar, ao frio, por alguém tão importante afinal como as outras, jeitosas, que passavam perto o bastante para as cobiçar e lhes afirmar sem reservas uma inesgotável fonte de potência sexual. A mesma que lhe falhava, tantas vezes, na hora da verdade em que estava na hora de provar o desejo e o amor por alguém que já não tinha vontade de esperar.

Agachou-se para apanhar um dos muitos ganchos que enfiara pelo cabelo, insistência, para ficar ainda mais bela aos olhos de alguém que a magoara, por mais do que uma vez, um canalha, sem palavra, traidor. Tombou-lhe junto aos dedos uma lágrima, de raiva como ela queria acreditar, de desilusão e tristeza pela espera fracassada, pelo amor que antes sonhava na armadura reluzente de um príncipe encantado, corroída pela ferrugem que a invadiu quando a inércia dominou o seu tempo por tempo demais.

Dobrou o jornal e enfiou-o debaixo do braço, despeitado, no preciso instante em que um vulto de mulher se agachava no lado oposto da estrada, junto a uma antiga camisaria. Não lhe distinguiu as formas, tudo bem, nem se ralava, fartura de caça na sua coutada privada, pólvora seca que cegava algumas e as trazia do céu para onde julgavam voar e de onde afinal apenas caíam. Troféus na parede, exibidas em conversas gritadas diante de uma plateia tão íntima como as pessoas que passavam e ignoravam a razão de tanto rancor espelhado nos olhos do homem que fingia sorrir, careta forçada, enquanto se esforçava para dobrar um simples jornal.

Nenhum se ralou com o ângulo de onde o vento bufava. A um empurrava, pelas costas, o mais depressa que podia, para longe daquela azeda e enregelada recordação. Ao outro oferecia resistência, contrariava a passada, simulava um obstáculo natural, alguma razão para adiar o momento da partida para uma terra chamada nunca mais. Ambos vergados pela força do sopro glaciar que os tolhia de medo. Medo da saudade que poderia mais tarde vencer o orgulho ferido, feroz, mais o desdém encenado para consumo de terceiros interessados apenas nas inconfidências que a vingança fazia cuspir. Medo da vergonha colada na testa dos mais derrotados, os menos habilitados para contornarem o fantasma da rejeição.

No meio da estrada vazia, um gancho de cabelo recebeu a carícia das folhas dispersas de um jornal que o vento, na voragem da sua teimosia, arrastou para assistir por instantes à recriação por analogia de um final feliz que um simples desencontro impediria de acontecer. 

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