TEMPO DE SOMBRAS
Luís Valise

 
 

Chega uma hora que não tem mais jeito, e pra ele chegou quando estava no trânsito, de volta pra casa. Ao dar uma conferida displicente no retrovisor, assustou-se com o velho escondido no banco de trás. Não repetiu a olhada, como se pudesse afastar a vida que se mudara de mala e cuia para o espelho. Agenor buscou aflito o maço de cigarros no bolso da camisa, e deu-se conta que largara os cigarros sete anos atrás. Ele não, mas o velho sentiu uma vontade irresistível de fumar. Parou o carro em frente a um bar. Evitou o espelho atrás do balcão, e comprou o cigarro com ar de culpa. Deu na partida, e enquanto dirigia tentava abrir o maço com os dentes, prática antiga. Um guarda surgiu na frente do carro, fazendo sinal para que ele parasse. Parou, abriu a janela, e ouviu do guarda: “Boa-tarde, meu senhor, o senhor se esqueceu de colocar o cinto de segurança.” Um sorriso amarelo, o cinto passado sobre o peito, um aceno de mão, e retomou o caminho. “Meu senhor”. Quem era “Meu senhor”? Colocou um cigarro na boca do velho, e percebeu que ele tomara o lugar do motorista. Como? Assim, sem mais nem menos? Preparava-se para reagir, quando o sinal ficou amarelo. Parou, deixou que o velho desse uma longa tragada, e só então reparou na luz amarela. A luz verde ficara para trás sem que ele se desse conta. Agora aquele velho no espelho, carona indesejável, vivendo no átimo que antecede ao vermelho. Enquanto o velho dava outra tragada o sinal abriu, ele aproveitou a volta do verde e fez uma conversão proibida.

Agnes acordou quando começava um filme na televisão. E a novela? Como fora perder a novela? O Agenor sempre a acordava ao chegar em casa. Tomava banho, assistia ao telejornal tomando um uisquinho, jantava, cochilava durante a novela, e depois despertava para um daqueles filmes que ninguém agüentava mais. Os filhos chegavam e saíam cada qual num horário diferente, mas ele e Agnes seguiam a rotina segura de quem já conhece todas as novidades. A irritação deu lugar à preocupação, dane-se a novela, e o Agenor?

Ele não voltava lá há uns bons vinte anos. As casas estavam deterioradas, as lojas tinham aspecto de mafuás. O carro rodava devagar por ruas onde o velho nunca passara, e o outro evitava dar explicações. Seu coração bateu mais depressa ao ver o bar aberto. Aquele bar, pensou o velho, deve ter muito a ver com o rapaz que desceu do carro e entrou sorrindo. Atrás do balcão também tinha um espelho, por isso ele ficou de costas e pediu um uísque. Outros homens olharam, estranhando a escolha diferente das habituais. O dono do bar era desconhecido. Que fim levaram o Siqueira e o ajudante, o Rosauro? Enquanto tomava goles curtos da bebida, seus olhos viam um tempo que não era mais. Acendeu mais um cigarro pro velho, que tossiu e saiu pra cuspir lá fora. Depois ficou conferindo discretamente os homens que bebiam cerveja. Eram todos velhos como o carona, mas nenhum conhecido. Pagou e saiu. Quando o carro passou em frente a casa da Marileusa ele viajou: e se eu descesse agora, tocasse a campainha e chamasse por ela? Resolveu passar também em frente a casa da Leila, e já estava quase chegando quando viu uma mulher baixa e gorda que caminhava com alguma dificuldade junto à parede. Desviou o olhar antes de ver seu rosto. Onde estavam todos? Talvez fossem as recordações, talvez fosse o uísque, a verdade é que o velho tinha uma sombra no olhar que o Agenor desconhecia, e foi aquela sombra que guiou o carro de volta pra casa.

Quando a porta da frente se abriu, Agnes estava pronta para dizer tudo o que imaginara, e se não fosse o cigarro na boca do Agenor teria mesmo dito poucas e boas. Ele deu-lhe um beijo no rosto espantado, e ela sentiu cheiro de álcool. Mãos nas cadeiras, ela só fez perguntar:

- Mas o quê significa isso, Agenor? Ele apontou pro velho no espelho:

- Sei lá, agora é com ele. E foi pro banho, enquanto Agnes olhava uma velha estranha no espelho.

 
 

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