ERRO FATAL
Vera Vilela

João era um senhor honesto, trabalhou a vida toda para garantir o sustento e o conforto de sua família. Casara-se aos 25 anos com Tereza, uma mulher de dotes domésticos sem igual: cozinhava, passava, bordava e ainda o ajudava na pequena marcenaria herdada de seu pai. Juntos, tiveram um casal de filhos que criaram segundo as normas de boa conduta e educação.

Tereza foi apresentada a João por uma irmã de sua mãe que, antecipadamente, já tivera feito uma pesquisa entre as moças casadoiras do vilarejo que moravam. O namoro foi rápido, tiveram apenas 6 meses para se conhecerem e planejarem seu futuro. Durante este tempo se viram apenas 4 vezes em festas promovidas por suas famílias.

João, em suas horas de folga, gostava de escrever, ficava às vezes até o começo da madrugada com um lampião aceso enchendo papéis e mais papéis de versos rimados, palavras bonitas e cartas de amor sem destinatário. 

Muitas vezes se perguntava da necessidade de escrever as ditas cartas. Vivia bem com sua Tereza, não eram apaixonados e nem isso era esperado. Respeitavam-se, combinavam em tudo, nunca discutiam. Mas a cada dia de sua vida, uma nova carta ele escrevia, começando sempre assim... 

Ao grande amor da minha vida!...

Tereza muitas vezes pegou os papéis largados sobre a escrivaninha e os guardou na gaveta, por curiosidade algumas vezes ela os leu e se encheu de orgulho, afinal João não era um homem assim tão duro, não queria demonstrar, mas nas cartas ele deixava escapar o grande amor que sentia.

Foi num dia de inverno, muito frio, Tereza amanheceu passando mal e pediu aos filhos que chamassem seu pai, ela já sofria há algum tempo de uma doença pulmonar. Foi apenas o tempo dele, perto dela, chegar e ouvi-la dizer suas últimas palavras. 

- Obrigada por me tornar o grande amor da sua vida, e morreu com um sorriso nos lábios a enganada Tereza.

Uma grande tristeza se abateu sobre João, mas homem forte como era logo se recuperou, suas cartas de amor jamais parou de escrever e agora cada dia mais, as caixas lotavam-se de papéis e mais papéis. Seu coração sentia uma saudade sem saber de quem.

Com o tempo resolveu voltar aos estudos, apesar da idade, cursou a Faculdade e tornou-se, agora, mestre.

*****

Mariana era uma criança inteligente e levada, parecia fora do seu mundo, sempre avoada.

Cresceu mimada, a caçulinha pelos irmãos era sempre cuidada. Ninguém podia chegar perto dela sem notar os olhares bravios de seus irmãos.

Tornando-se moça, ainda avoada, vivia escrevendo cartas de amor sem destinatário, sempre aquele amor lhe apertava o peito e corria escrever suas imensas páginas. Vivia com saudades de um amor que nunca viveu.

Casou aos 17 anos com Rafael, um rapaz bonito, cobiçado e muito inteligente e que, aos 24 anos, já era professor e podia dar a ela o sustento. Ele se apaixonou a primeira vista e ela correspondeu por imaginar ser assim o funcionamento do amor.

Rafael por várias vezes via Mariana escrevendo e sempre a incentivava cada vez mais a escrever, achava bonito os versos de amor que ela gravava no papel e sentia-se orgulhoso achando-se o destinatário dos mesmos. Mariana nunca lhe revelou que não era ele o amor de suas cartas e rimas.

Permaneceram casados 27 anos. 

Por uma fatalidade do destino Rafael abriu demais uma curva e deu de encontro a um caminhão de combustível. Mariana teve tempo apenas de se despedir dele no hospital e ouvi-lo agradecer por tantos anos de felicidade e tantos versos de amor. Morreu feliz.

*****

Mariana recuperou-se logo e para passar o tempo, pois os filhos já estavam casados, resolveu voltar aos estudos e se aprofundar no que gostava de fazer - escrever.

Fez supletivo e terminou o segundo grau. Fez vestibular e recebeu nota 10 em redação. Entrou no curso de Letras da Universidade Federal. 

Entre seus professores havia um que lhe chamou atenção desde o primeiro dia de aula: era o professor João, homem já com quase seus setenta anos, mas com um espírito jovem e dinâmico. Ele a ajudava a compor seus poemas e quando ela começava uma quintilha ou uma quadra ele já sabia como seria o último verso. Ela sentia um tremor esquisito e ao mesmo tempo gostoso quando se aproximava dele, sabia ela que as sensações eram recíprocas.

Eles contavam os minutos para estarem juntos novamente e escreverem os poemas de amor que cada dia ficavam mais lindos escritos pelos dois.

Mariana estava para completar seus 45 anos de idade e os alunos da faculdade lhe preparavam uma surpresa. Todos se davam muito bem e viviam se aconselhando com ela. Era como se fosse a mãe de todos.

Pediram então ao Professor João que escrevesse para ela uma poesia.

Ele correspondendo escreveu então:

“Linda menina Mariana
Que tem os olhos cor do céu
Seu sorriso amor emana
Seus cabelos te servem de véu.”

Por mais que tentasse mudar os versos se repetiam, uma vez após outra e resolveu desistir do intento dizendo aos alunos que estava sem inspiração e, aborrecido, saiu da sala apressado sem entender o que estava acontecendo com ele.

Mariana chegou toda bonita, com um vestido comprado especialmente para seu aniversário. Estudava à tarde, dali iria para um restaurante comemorar o evento com sua família.

Trazia nas mãos um caderno enorme cheio de poesias que prometera mostrar ao professor um dia. 

Já terminava a festinha improvisada para Mariana e nada do professor João aparecer, ela resolveu sentar-se um pouco e viu vários papéis amassados jogados no chão. Pegou um deles e leu...

“Linda menina Mariana
Que tem os olhos cor do céu
Seu sorriso amor emana
Seus cabelos te servem de véu “.

Pegou outro e leu:

“Linda menina Mariana
Que tem os olhos cor do céu
Seu sorriso amor emana
Seus cabelos te servem de véu.

Precisei esperar muito tempo
Para entender o que me ocorria
Mas só agora eu entendo
Para quem eu escrevia......”.

E mais um...

“Linda menina Mariana
Que tem os olhos cor do céu
Seu sorriso amor emana
Seus cabelos te servem de véu.

Precisei esperar muito tempo
Para entender o que me ocorria
Mas só agora eu entendo
Para quem eu escrevia!

Quando pensei em te escrever
Lembrei-me das cartas que escrevi
E por mais que tentasse mudar
Em todas elas eu te vi”.

Mariana então pegou seu caderno e leu baixinho o poema que escrevera, hoje, para o professor:

“Quando pensei em te escrever
Lembrei-me das cartas que escrevi
E por mais que tentasse mudar
Em todas elas eu te vi”.

Mariana levou um susto então pois, naquele momento entrou um aluno transtornado, com a face pálida e tremendo falou:

- Gente, o professor João saiu daqui tão apressado e distraído que ao atravessar a rua nem notou um carro que vinha em sua direção e foi atropelado, está lá jogado no chão esperando a ambulância chegar.

Mariana largou tudo, correu e se jogou ao lado do professor, molhou seus joelhos com o sangue que fluía do seu corpo, delicadamente enfiou sua mão por debaixo da cabeça do professor levantando-a. Ele disse, então, com os olhos lacrimejando:

- É você então o grande amor da minha vida! Esperei por você por toda a minha vida, mas o destino nos enganou e agora estou partindo.

Com os olhos jorrando lágrimas ela então o fitou e, sentindo o grande amor bater em seu coração, disse-lhe:

- O tempo nos enganou sim meu amor, o destino nos causou um grande desencontro, jamais voltarei a escrever. Ao dizer isto viu-o cerrar os olhos e dar seu último suspiro. João morreu com um sorriso nos lábios.

Ouve-se então um grande trovão, rajadas de ventos, raios cruzando os Céus e lá em cima o Dono do livro da vida fala ao responsável pelos apontamentos de nascimentos e mortes.

- Vistes o que fizestes? Que grande desencontro provocastes? 

E o responsável pelos apontamentos escreveu no livro de baixas:

- Deixou hoje o mundo terreno João Martins Azevedo, por erro de data e local de seu nascimento, por este que abaixo assina, ser-lhe-á concedido perdão de todos os seus erros e subirá direto ao último andar para gozar dos prazeres da eternidade na cobertura do Paraíso. Para que meu erro seja reparado, trago junto a ele Mariana de Jesus e que fiquem juntos para sempre.

*****

Neste instante Mariana olha e vê um caminhão vir em sua direção e de João, que jaz inerte no chão, coloca os braços em frente ao rosto e se sente desfalecer. Ao abrir os olhos vê João em sua frente com a mão estendida lhe oferecendo apoio para levantar-se da cama que se encontra.

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