VERSÃO EXTRA-OFICIAL
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Envolta na bandeira em trapos, dentro da redoma de vidro, a espada quebrada do General Espiñosa. Relíquia bélica do tempo da guerra da independência. Para os meninos algo tão distante quanto o Diluvio ou o Período Paleolítico.

O guia do museu, um velhote que devia ter sido testemunha ocular de tudo, narrou em alto e rouco tom a versão dos vencedores para a rendição:

"Naquele ano de 1861, na sangrenta e decisiva batalha de Poronoicó, com um regimento de infantaria três vezes menor que o do inimigo, o bravo General Agildo Bagé..."

Os meninos já conheciam a história - ou seria estória?

O General Bagé e seu cavalo foram imortalizados em bronze ali na praça em frente e supervisiona com seu olhar carrancudo o trânsito caótico da cidade. Tinha sido um homem destemido, diziam. Sobrevivera ao fogo cerrado e à chuva de morteiros desfechada ferozmente contra suas posições. E agora, lástima das lástimas, na imobilidade esverdeada da estátua eqüestre em que se transformara, espada em punho, não conseguia sequer se desviar da pontaria escatológica dos pombos.

Mas havia outra versão, a dos vencidos, e que não fora escrita: Dizem que na verdade o General Espiñosa fora traído pelo seu ordenança que por infelicidade também era seu genro. Escondido numa ilhota fluvial, o velho comandante foi surpreendido por um comando mercenário que covardemente o torturou até a morte para que revelasse onde ocultara o ouro com que adquiriria recursos para financiar a resistência.

Homem honrado, o General Espiñosa morreu sem dar com a língua nos dentes e sem se render. O quadro pintado por um artista da época retratando o momento da rendição não expressava a verdade; já que o General Bagé, por exemplo, encontrava-se naquela ocasião a milhas do front nos braços da amante.

Diz a lenda que a filha de Espiñosa, Palomita, ao saber da traição do marido e da conseqüente execução do pai, cometeu suicídio atirando-se de um penhasco. Há quem garanta porém que, antes de se esborrachar nos rochedos, a moça atormentada teria se transformado em uma pomba azul e desaparecido no céu cinza-chumbo da fronteira devastada.

Seu marido, o traidor, teve o merecido castigo. Acabou executado numa queima de arquivos para não comprometer a veracidade da versão oficial

Prestando bem atenção, deve haver um fundo de verdade na história da pobre Palomita. Vai ver são descendentes seus os pombos vadios que há cem anos voam em formação pela praça e bombardeiam precisos a estátua do herói forjado.

Isso o velho guia do museu não conta. Isso os meninos não aprendem na escola.

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