A. P. RENDIÇÃO
Iosif Landau

Olhou curiosa, notou sala decorada com bom gosto, desaprovou excesso de bibelôs, apreciou a estante, livros em desordem vivenciavam uso, quadros, não entendia o bastante para avaliar , móveis clean, chão de tábua corrida...

– Não aprecia tapetes?

– São caros, os industrializados um horror.

O tom de voz e ligeira afetação lembrou-lhe o escopo da visita, retirou da ampla bolsa papeis, os colocou numa mesa:

– Por favor, assine!

Ele não tomou conhecimento: 

– Tem que esquecer, abrir mão, ele se foi, ele...

– ...estou viva, não se arvore dono de...

– ...e o que sabe da nossa relação? Ele...

– ...me disse que estava doente, pediu pra vir ficar consigo, deixei, no sexto dia... você sabe!

O belo rosto dele entristeceu:

– Sim, cuidei dele, trocava as fraldas, banhava o corpo, acarinhava, o levava nos braços, deitava com ele... sou pequeno, você é pequena, tudo que fiz nas vida foi pequeno, só o nosso amor foi grande, a morte dele engrandeceu até a você.

– Não passa de um degenerado...

...ela costumava ser lúcida a respeito de muitas coisas, não se importava com situações sentimentais, abandonara o terreno do amor, do erotismo, o abismo aberto pela presença do homem, o que aquilo representava provocava nela agora humilhação e sofrimento, o tempo radiante lá fora não fez seu humor melhorar, preciso suportá-lo? pensamentos negativos atormentaram, passado, presente, pareciam desenrolar-se feito um novelo, pelas duas pontas...

– ...nem sabia de sua existência... te vi no enterro... 

...mulheres, esquisitas, odiou o modo patético como ela olhava para ele, passou mão trêmula pelo cabelo, preciso interromper... 

– Quer uma xícara de chocolate com...

Ela não parecia não ter ouvido:

– ...começou por beijar apenas meu rosto, é assim que morre o amor... te beijava na boca? 

– Quer uma xícara com chocolate com...

– ...escreveu uma carta antes da...

– ...creme?... nunca me disse.

– ...doença, queria saber do nosso filho, encerrou a carta com um te amo, pensei que voltaria... não quero chocolate nenhum.

Ele sentou-se na bergére, cruzou a pernas com nonchalance, seus olhos bem abertos:

– Não me mencionou?

– Não, era educado, sensível.

Ele sorriu satisfeito:

– Os outros são tão grosseiros...

Ela estancou à sua frente:

– ...outros? são vocês, afeminados, se barbeiam, tem pêlo no peito e... – ela parou de falar. 

Ele desviou o olhar, parecia pensar:

– Agressão, sempre agredidos, somos aceitos quando bem sucedidos, vestimos as mulheres e elas nos agradecem, somos escritores e nos premiam, bailarinos, nos aplaudem, como atores nos dão papeis másculos, fingem não saber, quando mortos sussurram, coitado, que doença terrível, tão talentoso...

– ...pára de...

– ...já reparou como os best sellers são sobre homens bem machos, até as escritoras os personificam, só depois de mortas dizem, puxa, Emily Dickinson, Mary McCarthy, maravilhosas, mulheres também são discriminadas...

– ...demonstrar cultura não..

– ...precisou passar anos para se aceitar Oscar Wilde, Somerset Maughan , o darling do jet set europeu nunca ousou se revelar em vida, Noel Coward , enfant gaté londrino, Isherwood o gênio de Cabaret foi mais corajoso...

– ...sei, sei, só gay conseguiria retratar Berlim pré- guerra com tanta fidelidade, e daí? parece afirmar que se não fossem como são não seriam geniais, baboseira, esse argumento é grotesco...

– ...assassinam Pasolini e lamentam...

– ...mentiroso e falso, demonstra a fragilidade de vocês... pára de se empavonar com tanta cultura, plumas e paetês dos bichas intelectualóides, os travestis do asfalto são mais honestos, não...

...ele parou de escutar, sentiu desapontamento, seu discurso pálida justificativa, devia ter silenciado, olhou a mulher, triunfo no rosto dela.

– Já deitou com mulher?

Lembrança dolorosa, estremeceu, levantou-se, aproximou-se do bar, encheu um copo:

– Quer?

– Já deitou com...

– ...aos catorze anos meu tio me levou pra zona de prostituição, chegou a hora, menino! sabia o que me aguardava, o curioso é que eu estava ansioso, queria... me empurrou prum quarto... mulher, rosto cansado, corpo caído, nua, me esperava...

– ...pode parar, não...

– ...pernas escancaradas, vem, docinho, vem pra mamãe... mamãe, Deus! quis fugir...

– chega! enten...

– ...ela me puxou, acariciou meu sexo... em vão... enfiou meu rosto nos seios, pegou minha mão e a colocou entra as pernas dela...

– pára!

Ela queria pedir perdão, fez menção de colocar a mão nos ouvidos, voz monocórdia do homem a manteve imóvel.

– ...o odor não me abandonou por anos... escuta, docinho, tá ouvindo? do outro lado da parede vinham gemidos... meu pai, fazendo amor com minha mãe, era isso que ouvia... ouvira tantas vezes...

– espera! já enten...

– ...me livrei da criatura... ”gostou?” meu tio sorria, “o que foi?” eu chorava...

Ficaram em silêncio, ele com o copo na mão, ela acendeu um cigarro.

– Você quase conseguiu – falou ela depois de amassar o cigarro no cinzeiro – tantos meninos tiveram experiência semelhante e nem por isso...

Ele levantou a mão com delicadeza, ela aguardou.

– Somos auto-suficientes, temos que ser, é como estar na floresta, rachar lenha, consertar telhado, caçar, sermos independentes...

Ela começou a rir:

– Outro discurso... hipócritas, ficam por aí em passeatas, de mão dada, afrontam a maioria decente como se fossem meretrizes sofredoras, ridículo.

– Sofredores, sim, enfraquecemos, o corpo coberto de chagas, cada dia mais consumidos, podres, trancados em cômodos, isolados, familiares reaparecem, meu Deus, como é terrível, os olhares compungidos tão falsos, querem morte rápida, silenciados somos honrados, aceitos.

Ela ainda não tinha parado a risada.

– Viu filmes demais, pára de interpretar o Tom Hanks, fizeram ele ganhar o Oscar, ele devia ter agradecido a vocês na noite da premiação, ele...

Ela parou, deu-se conta do excesso, queria retroceder. 

– Agora quero aquela xícara com chocolate.

O homem levantou-se, caminhou com elegância, ela o seguiu com o olhar, são incríveis mesmo, pensou.

Voltou com duas xícaras fumegantes:

– Costuma sonhar? não? pois eu sonho, sonho com ele, nós dois felizes para sempre, aqui, decorei o nosso lar, não gosta?

Ela olhou de novo ao redor, reconheceu a foto, ainda não esquecera os beijos, o excitamento, o prazer:

– Foi a mim que ele procurou quando adoeceu... 

A mulher acendeu outro cigarro.

– Ele afirmou que mal a tocava.

O olhou com desprezo, é espantoso, pensou, ele age como mulher.

– Não pode fazer isso, vender o apartamento, era nosso lar – falou ele.

Ela sorriu com frieza:

– Interessante, na sua peroração você parecia alheio à vil matéria – sorriso irônico – até sua voz perdeu a modulação melódica, você...

– ...mulher, figura estranha, fica na cama a manhã inteira, quando se levanta manda a empregada...

– ...seu filho da puta! ainda ousa debochar? o apartamento é meu também – gritou ela – foi comprado com minhas economias, quando me lembro de nós três sinto ânsias de vomito.

– Não se queixe tanto, você fez a colheita dos frutos, está rica. Não precisa se desfazer do apartamento, te deixou tudo, deixou...

– ...deixou um filho, ou não sabe? pensa que deixou dinheiro no colchão? Jamais...

...cabelos despenteados, rosto crispado, não lhe pareceu mais tão bonita...

– ...te perdoarei.

...viu ele estremecer, seu marido, um fantasma ao lado dele parecia triste, cheiro de esperma, de merda, pareciam alcançá-la, sentiu-se profundamente cansada.

– “Não me deixem viver, quero um final rápido ao deter o curso do meu terrível destino”, foi o que ele declarou naquela noite, ele queria morrer, me deitei ao seu lado e esperamos juntos, fechei os olhos dele – lagrimas apareceram no rosto dele – chorei muitas vezes nos últimos anos; já berrei a plenos pulmões de raiva e impotência, gritando de medo e dor física, agora choro por estar triste...”vivo o infame, tinha de ser assim/ Aqui mesmo onde a morte me faz pastar/Onde o machado cai ao acaso/Mulher, amante iludidos/Boatos, intrigas de tolos/Aqui cantei, brinquei”... não pode vender o apartamento...aqui residem lembranças dele, aqui...

...queria parar de escutar, a voz continuava, hino ao morto, desespero, não esboçou nenhum movimento para o interromper, tem pavor, pavor da solidão, eu tenho o nosso filho, agora ela o entendia, era verdade que ainda estava ressentida, viera atrás de vingança, se rendeu, aos poucos, a raiva dela em sorriso, prometia carinhosa proteção, lágrimas apareceram, ele tinha parado de falar, o silêncio ecoava como numa catedral.

– Me fez chorar – falou ela.

Ele permaneceu calado.

– Que tem em mente? – continuou ela. 

– Seu filho? onde está? 

Pânico apossou-se dela, quase paroxismo.

– Trouxe ele, não?

Sim, viera com ela, o deixara no hall de entrada, fica aqui, falara, vai ser rápido, não esperava demorar-se, se ao menos pudesse adivinhar não o teria trazido, estranho como o destino conspira.

– ...ser mãe, tenho inveja de você, nós não podemos ser, mãe é uma amiga que a natureza nos concede uma só vez.

Aproximou-se dela, a mão correu pelas faces dela, não ofereceu resistência, aos poucos o rosto dela transformou-se, expressão suave, semblante de aceitação passiva, minha vida é fantasia? talvez tudo não passe de fantasia, nunca me senti tão sensual, bonito e gay, como seria se... dois homens juntos, não tenho culpa... ela levantou-se, caminhou até a porta, abriu:

O menino, sorriu:

– Mãe...

Segurou a pequena mão:

– ...vem, entra... abrace o amigo do seu pai.

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