ALTA INFIDELIDADE
Roseli Pereira

Se eu contar pra você que um assassinato só pôde desvendado graças à vasta experiência de um detetive primário, que a acusação foi extremamente rigorosa e pediu condenação por crime culposo, que a testemunha fez uma deposição no tribunal, que graças ao brilhante trabalho de um caríssimo advogado assistente o ato foi considerado doloso, e que, ainda por cima, o juiz estava de roupão, você vai achar que eu fiquei doida. Só que tudo isso aconteceu de verdade e a vítima fui eu. Eu e os não-sei-quantos-milhões de brasileiros que têm acesso aos seriados da TV por assinatura e vêem, todos os dias, o seu velho e bom português claro ser cruelmente trucidado.

Você pode até imaginar que eu tive o azar de assistir justamente a um episódio isolado, que infelizmente teria sido traduzido durante um surto psicolingüístico que o tradutor teria sofrido bem no dia em que o revisor precisou levar o cachorro para cruzar, e que por isso acabou indo ao ar daquele jeito, mesmo. 

Quisera eu! Na verdade, essas pérolas todas foram colhidas no decorrer de uma semana, em trechos de três ou quatro seriados diferentes. Considerando-se que eu mal tenho tempo pra ver televisão, e que só consigo assistir a um canal de cada vez, imagine só a coleção que a gente reuniria se fizesse uma varredura completa, por um mês inteirinho.

Engraçado. Enquanto a maior parte das pessoas precisa apresentar diploma, fazer exame de conhecimentos gerais, enfrentar o psicotécnico e passar por entrevistas constrangedoras até conseguir provar que é competente para realizar seu trabalho, parece que, para traduzir textos de filmes e seriados que serão lidos ou ouvidos por milhões de pessoas, basta apresentar a nota fiscal de um dicionário bilíngüe. Só a nota fiscal, mesmo, porque se esses tradutores fossem obrigados a ter e a abrir regularmente o tal dicionário, certamente não colocariam na boca de ninguém frases como "seus lábios têm sabor de ambrósia".

Bem, pra falar a verdade, alguns abrem, sim. Mas é só para procurar palavras esquisitas, diferentes e que estejam no mais completo desuso. De qualquer forma, não é preciso ser "experto" em português e nem conhecer jargão nenhum para saber que, por aqui, "profissional primário" nunca é o chefe da equipe, mas sim aquele que está começando agora e que, por isso, ainda não teve tempo para adquirir experiência. E que "advogado assistente" é um advogado que trabalha como assistente de outro advogado, e não o responsável pela assistência jurídica.

Pior que isso, só a mistura de doloso com culposo. São termos técnicos? Sim, são. Todo mundo é obrigado a nascer sabendo quais são seus significados? Não, não é. Mas quem se mete a traduzir seriado de julgamento deveria, no mínimo, usar o bom senso de perguntar para um vizinho ou amigo ou parente advogado. Na verdade, nem advogado precisaria ser. Bastaria ter um pouquinho de cultura ou, quem sabe, apenas um dicionário. Em tempo: "culposo" quer dizer "sem intenção", e "doloso" quer dizer "intencional". Bem ao contrário do que aquele seriado quis me fazer acreditar. O que, aliás, muda quase tudo no que diz respeito a um crime. Só não muda tudo porque a vítima continua no prejuízo. 

Mas o mais interessante, pra mim, foi a deposição que a testemunha fez no tribunal. Fico só imaginando. A testemunha jura dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade, depois olha para os lados, escolhe algum personagem e o depõe. O que é uma grande sacanagem, porque se naquele episódio existisse alguém que merecesse ser deposto, não seria personagem: seria o tradutor, que não conhece a diferença entre depoimento e deposição e ainda insiste em compartir sua ignorância comigo.

É claro que eu sei que os diálogos de um filme precisam ser adaptados, para que as legendas e dublagens ocupem seu espaço direitinho. Mas daí a submeter um juiz (ainda que fictício) ao constrangimento de conduzir um julgamento (ainda que fictício) vestido de roupão, existe uma distância tão grande que a minha vista não alcança nem com os óculos novos. Ainda que eu concorde, de fato, que um roupão deva ser muito mais confortável do que uma toga.

Eu poderia simplesmente desligar a televisão, fechando meus olhos e ouvidos para tais asneiras. Mas, mesmo assim, milhões de outras pessoas continuariam lendo e ouvindo todas elas e, o que é pior, continuariam aprendendo errado ou desaprendendo de vez. Por isso, eu não desisto e nem me rendo. Vou continuar assistindo meu Ally McBeal, meu Lei e Ordem e outros quetais sossegada, e sempre que me impuserem pataquadas como essas, eu vou reciprocar. E conclamo você a fazer o mesmo.

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