AZUL INCANDESCENTE
Ana Claudia Vargas

Foi minha mãe que disse "aquela é a casa dele". Num lugar perdido entre os morros de Minas, no meio da terra vermelha e das árvores imensas, numa casa pequenininha e humilde... era lá, a casa dele. Ao redor da casa, umas flores mal plantadas, no fundo, mais flores mal plantadas. Não havia muros e sim uma cerca, e enfim, a casa se parecia com aquelas que desenhamos na infância, com um sol sorridente acima das nuvens, que se pareciam obviamente, com bolotas de algodão.

Parecia imagem de sonho e eu fiquei olhando a casa e tentando buscar no passado os olhos e o sorriso daquele que morava na casa.

E eis que ele veio vindo, emergindo das águas da memória como se chegasse cansado, exausto mesmo, cansado de ter tentado ou cansado de não ter tentado, enfadado da vida e de si mesmo.

Mas, apesar disso, ele veio com a cara do passado e seu sorriso logo soou franco e aberto, sorriso de quem ri com a alma ampla e o coração livre.

Ele era assim: cheio de vida e poderia dizer sem medo de parecer amarga, cheio de si.

A vida nele era um acontecimento assim trágico e moroso, a vida nele se ampliava de tal maneira que soava como ópera. Redundante e repleta de lances dramáticos como uma ópera.

Ele era assim: andava pelas ruas da cidade com uma incrível consciência de si mesmo, consciência esta que parecia sempre lúcida, sábia e equilibrada (na visão dele, lógico). Uma pessoa inventada eu diria. Aquele tipo no qual acreditamos no máximo, até os 20 anos.

Enquanto eu avaliava os detalhes daquela casa tosca, e nem ouvia os comentários de minha mãe, me lembrava da sua bela voz de barítono soando grave como um trovão e quase sempre me recriminando por qualquer coisa ("Você não conhece? Nunca ouviu? Não sabe quem canta? Nunca leu? Precisa se atualizar, precisa ser mais isso ou aquilo... Ah, desse jeito, o que vai ser de você, menina?").

Me lembrava de sua mão imensa, de dedos longos e finos ("de guitarrista", dizia ele com orgulho), de sua cabeleira negra e encaracolada, sempre caindo nos olhos e o fazendo mais irresistível do que nunca. Deus: como ele era belo! Como uma escultura grega, ele era a própria encarnação da beleza. Sim.

Naquele tempo distante e vago dos meus 17 anos (e portanto, longe de ser esta mulher séria e por demais realista na qual me tornei) eu o achava o "máximo", eu o achava o namorado ideal, parecia saído daquelas bandas inglesas (tipo Cure ou Smiths) com um olhar sempre misterioso, triste e arrogante (afinal, bem sabemos o quanto a tristeza também pode corromper).

E, enquanto andávamos pelas ruas da cidade, eu me sentia verdadeiramente feliz, assim de uma felicidade calculadamente triste (bom eu nunca vi um adolescente realmente feliz), uma felicidade que se escondia atrás da rebeldia inútil e vã daqueles distantes anos 80 (perdidos entre a loucura dos 70 e a caretice dos 90, os 80 foram apenas - deliciosamente - confusos), no qual passeávamos portanto, nossa vaga e vazia rebeldia.

Minha mãe nesta hora me diz que ele "voltou a estudar". Vejam só: ele voltou a estudar. Que bom. E, novamente, ouço sua voz de trovão ecoando na mente e dizendo que "o sistema está falido e corrompido. Que nada mais importa. Que é preciso criar uma sociedade alternativa como a que o Raulzito propôs, porque não dá mais... E os padres e professores e comerciantes, todos, todos... trabalham em vão para um mundo perdido... etc e etc". Ufa! Quantos discursos, quantas definições acabadas do mundo. Quanto se achar "o dono" da sabedoria infinita (aliás, impossível esquecer o dia no qual ele invadiu a igreja e xingou o padre, e andou descalço pelas ruas da cidade, o filho de burguêses; e roubou o carro da polícia, o típico filho da típica família mineira) e inesgotável do universo.

Ele era assim.

E enquanto meus pés vão pisando nestes pedregulhos afiados como facas, aqui no presente, vou trazendo do passado, aquele moço que um dia ao me beijar, cuspiu e disse, que eu não deveria usar batom pois "o batom tem muita química e namorada minha tem que ser o mais natural possível", e disse também que às vezes (por eu não concordar com ele) se sentia "como se atirasse pérolas aos porcos... "Sim... Sim... Aquele moço, eu realmente na ingenuidade dos meus 17, eu achava que ele seria um grande cantor de rock ou um grande (claro) ator de teatro. Aquele moço, eu o achava tão diferente dos demais, tão arrojado, inteligente, sedutor, com sua bela voz e sua figura de deus grego... eu o achava especial. Absolutamente: especial.

Achava que seu destemor e sua arrogância o levariam para longe, para os lugares nos quais os sonhos se realizam. Aquela pequena cidade de Minas certamente "veria" algo assim, fantástico, deslumbrante, inesquecível.

Agora, o sol vai se pondo atrás das montanhas e devo dizer que é um pôr-do-sol de cartão postal. Pensem em um pôr-do-sol de cartão postal: é assim que o sol se despede da terra lá em Minas. E, enquanto a tarde vai se transformando em noite e as certezas ficam frias e rolam pela terra como as folhas das árvores no outono... Penso o óbvio: o tempo passou e nos envelheceu.

Enquanto aprecio as milhares de estrelas no firmamento deste céu absurdamente negro (digo, sem a poluição que torna os céus noturnos e urbanos meio avermelhados) da cidade na qual nasci, penso que o que ficou de toda esta história de amor juvenil (não, não foi a saudade), foi um sentimento de compreensão. Hoje, desta distância que me permite ver tudo com olhos dóceis e irônicos, que me deixa fantasiar um pouco e sonhar um pouco...

Hoje, me lembro daquele moço e entendo todas as suas aspirações, entendo a sua estranha maneira de amar sempre amando a si próprio acima de todas as coisas, entendo os seus discursos arrebatados e desprovidos de sentido prático, entendo o seu "louco e sedutor" jeito de levar a vida - como se a vida fosse sempre além, lá longe, atrás das montanhas, no Rio ou em São Paulo - como se estivesse sempre sob os holofotes em um palco (e como se os que trabalham nos bastidores também não vivessem eles, as suas vidas).

Aquele moço envelheceu e como todos nós (?) não pensa mais em "mudar o mundo". Ele construiu sua casa e vive hoje alheio à revoluções. Saiu, viu e voltou. Não venceu, no sentido mundano do termo. Nem sei se de fato tentou. Penso em todas os seus grandes sonhos, penso em todas as suas deslumbrantes aspirações, enquanto olho as estrelas deste céu interiorano.

E, enquanto, olho as estrelas, penso nas estrelas azuis que eram os olhos daquele moço e que faiscavam mais que turquesas quando ele começava a sonhar, a sonhar e a sonhar.

Me pergunto se ainda brilharão daquele jeito os olhos azuis como turquesas, daquele moço que inventou mil revoluções e que mora hoje, numa casinha pequenina lá no interior das Gerais.

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