O HOMEM PERIGOSO
Luís Valise

 
 

Quarta-feira, dia de visita na cadeia.

Na cama, sob as cobertas, Dona Priminha ouve o marido cantarolando enquanto faz a barba. Tenta pegar no sono outra vez, mas hoje é o dia da semana em que ele chegará cedo e a levará quase sem palavras para a cama, e a possuirá em silêncio e de olhos fechados. Por isso o sono foge em busca do sol. Passos pesados vergam o assoalho de tábuas corridas. Com os olhos semicerrados ela acompanha o homem baixo e atarracado dando o nó na gravata, que ficará pelo resto do dia abaixo do colarinho desabotoado. Como sempre o Delegado pega o revólver, um Colt Cavalinho .38 niquelado, cano longo, cabo recoberto com madrepérola, e coloca-o na cintura, entre o cinto apertado e as carnes moles da barriga. Veste o paletó, e sai sem fazer barulho nem se despedir da mulher. Dona Priminha ouve bater a porta da rua e suspira entre resignada e aliviada. Tanto primo pra casar e foi logo escolher aquele, o pior de todos.

Os carcereiros seguem as instruções do chefe, e as mulheres que vão visitar os presos são separadas em duas filas. A fila das mais jovens, menos maltratadas e sem crianças passa pela porta da sala do Dr. Delegado. A outra fila, “das perebentas” como eles dizem, segue para a sala de triagem. Sentado atrás da mesa, o Delegado lê alguns papéis. Parada junto à porta da sala, uma jovem de pele clara segura uma sacola de plástico. A autoridade ergue os olhos e manda que ela entre e feche a porta. A mulher se aproxima da mesa e abre a sacola para a vistoria. Toda semana é assim. O Delegado examina rapidamente o conteúdo da sacola. Em seguida ordena que ela erga a saia. Levanta-se e se aproxima da mulher. Seus olhos estão fixos nas coxas que aparecem debaixo da saia erguida. “Levanta mais, porra!” A mulher obedece, e se prepara para sentir a mão gorda e suada que vai deslizar entre suas coxas, apertar seu sexo e apalpar sua bunda, antes que ela seja liberada para ir ao pátio de visitas. As mulheres desta fila não reclamam. Sabem que aquilo faz parte do ritual do manda-chuva, do todo-poderoso, do majorengo Dr. Ezequiel Severino Mangosto. – A próxima!

No fim da tarde Dr Severo, como é conhecido pela ignorância confundida com autoridade, sente os testículos doloridos. Passa o comando da delegacia para o seu substituto e sai apressado para casa. Entra chamando a mulher pelo apelido de infância – Priminha!, senta na cama, guarda o revólver sob o travesseiro, joga a roupa de qualquer jeito sobre a cadeira, e quando a mulher entra no quarto ele já está deitado, mão dentro da cueca, a outra chamando por ela – Vem, Priminha, vem! Ela vai, e faz o que sempre fez: deixa.

Nos outros dias da semana Dr Severo segue a rotina tediosa: relaxa flagrantes mediante suborno, extrai confissões na “sala de maquiagem”, como ele chama um cômodo nos fundos da delegacia, com poucos móveis e uma barra de ferro apoiada sobre dois cavaletes. É melhor ir falando logo. Da janela da sua sala vigia o bem precioso conquistado há pouco: um automóvel importado, flamejante Mercedes azul que mesmo chamando a atenção de todos ninguém se atreve a perguntar o óbvio: como? Com que dinheiro? Dona Priminha sente certo constrangimento em sair com o marido naquele carro. Vai meio encolhida ao lado da autoridade esfuziante.

O tempo voa, Dona Priminha é despertada pela cantoria que vem do banheiro. O sono escapa célere em busca de ar. Pela fresta dos olhos a gravata, o Colt Cavalinho, o afastamento. O trinco da porta da rua. Entre tantos primos por quê justo esse, o pior?

Os olhos gulosos do Dr Severo examinam a presa exposta. “Sobe mais, porra!”, essa parece que passa fome, coxas finas, bunda pobre, pobre. – A próxima! Morena de pele clara, ele lembra bem dela. O coração apressado antecipa as coxas firmes e macias. Passa os olhos num relance pela sacola: pacote de cigarros, um salame, pão de forma, uma dúzia de ovos, seis tomates, três cebolas, a mixaria de sempre. Ele se esparrama na cadeira. Olha os joelhos da moça, que nem espera ele pedir, já vai levantando a saia devagar. Pára no meio das coxas, sabe o que ele quer. “Sobe mais, porra!” Ela ergue a saia bem devagarinho, até aparecer o sexo descoberto. O Delegado estende a mão, acaricia as coxas alvas, passa os dedos sobre os pelos negros, olha a morena e pergunta o que ela quer com aquilo. Ela é direta:

- Deixe o meu homem fugir.

Ele confere o nome do homem no passe de entrada.

- Teu homem é perigoso. O preço é mais alto.

- O que o senhor quiser.

- Às seis da tarde no ponto de ônibus defronte a Torre do Relógio.

Já escureceu. Dona Priminha confere mais uma vez as horas, na esperança de que ele tenha se esquecido que hoje é quarta. Mas Dr Severo não é homem de se esquecer, apenas aproveita a oferta de carne jovem, e dirige a Mercedes azul com todo cuidado em meio ao trânsito desordenado. A Torre do Relógio fica numa praça de terra batida, sem árvores ou arbustos que possam esconder uma cilada. Ele pára na esquina, varre os arredores com o olhar experiente. Quando a esmola é demais... A morena clara está parada junto ao ponto de ônibus, em meio a outras pessoas. Ele contorna a praça e estaciona no lado oposto. Ela olha para trás, vê o carro estacionado, espera um sinal. Um piscar de farol. Ela sai do ponto e se encaminha para o carro.

Espremida junto a porta, a morena não olha para o motorista. Impôs condição. Nada de hotel, motel ou drive-in, seu homem é conhecido, se ele fica sabendo, babau! Tem que ser sem testemunhas. A Mercedes azul sai do asfalto, se embrenha por um caminho de terra, e pára oculta pela escuridão. Dr Severo faz jus ao apelido:

- Olha aqui, nada de meter, meter eu meto na minha mulher. Eu quero uma chupada.

A morena ouve o barulho do zíper da calça sendo aberto. Chega mais perto do Dr Delegado, pega o membro e começa o movimento de vai e vem. Ouve a respiração do homem ficar mais forte. O pau cresce, incha, ela se abaixa e começa a beija-lo. O homem põe a mão na sua bunda. Ela põe o pau na boca. E provoca:

- Eu quero mais, abre a calça, abre.

O Delegado solta o cinto, põe o revólver no assento , abre toda a calça, e segura a barriga com as duas mãos para deixar o membro descoberto. A morena abocanha o pau todo, o homem fecha os olhos, e quando torna a abri-los a morena está de novo espremida junto a porta do carro. Ele vai ordenar que ela continue, mas se cala ao ver que ela empunha seu revólver com as duas mãos. Ele ouve o ruído da arma sendo engatilhada, sabe que o gatilho é sensível, que merda é esta? Endurece:

- Vira essa porra pra lá, cuidado, não vai fazer besteira!

A morena nada fala. Aproxima mais a arma do rosto do Delegado. Ele vira a cabeça aterrorizado, sente o cano encostado na têmpora, e nada mais. O barulho do tiro dentro do carro fechado é ensurdecedor. Dr. Severo morre com as calças abertas e o pau duro pra fora.

Quando a campainha tocou Dona Priminha sabia que boa coisa não era. Foi poupada de detalhes. Assim como para a imprensa, para ela o marido foi alvo de seqüestro relâmpago. Sumiram o relógio, a carteira, o talão de cheques e o revólver. Os cavaletes e a barra de ferro sumiram da sala de maquiagem.

Quarta-feira, dia de visita na cadeia. A fila de mulheres é grande. Moças, velhas, muitas com filhos de colo, todas se espremem em direção à sala de triagem. Uma morena-clara é tratada com respeito pelos policiais, sabem que seu homem é perigoso.

Muita gente compareceu ao enterro do Delegado, a maioria desconhecida para Dona Priminha. Vieram também muitos familiares, até um primo que não via há muitos e muitos anos, e que foi muito solidário e prestativo.

A vida segue. Esse primo tem apartamento na praia. Há quanto tempo Dona Priminha não vai à praia? Um fim-de-semana desses eles irão. O primo não vê a hora de guiar a Mercedes azul.

 
 

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