TUDO AZUL PARA LUÍSA
Thaís Emília

As íris mudas de Luísa boiavam sem rumo no éter ocular. Antes elas ostentavam, na tímida e inquietante língua do olhar, murmúrios tão veludosos que bastava o ruído ciliar das pálpebras se entrefechando para silenciar sua voz. Há oito anos, porém, Luísa só podia falar com a boca ou as mãos. Seu olhar emudecera sem que o renomado Dr. Quejando, rei absoluto das dores de barriga, gripes, partos, tosses compridas, maus-olhados e verminoses do lugar, pudesse fazer algo.

Agora, a aflição que mais turvava a serenidade auto-imposta do coração de Luísa era a crença alheia de que no olhar carregamos a alma.Também ela acreditara nisso um dia, mas então seus olhos viviam ainda, palpitantes no azul úmido e espesso que os coloria, camaleões celestes de tonalidades que revelavam ao invés de camuflar, conforme Luísa cultivasse ódios ou acalentasse seus amores intactos. Seria sua alma agora vazia, inerte e estúpida como (parecia-lhe) seu olhar? Seria a vergonha de algum pecado imperdoável, inconfessável mesmo, que fizera sua alma esconder-se deliberadamente na cerração da cegueira? 

Luísa sentia-se esmagada sob o peso detestável dos olhares de pena e compaixão que ela sentia os outros lançarem. Com o tempo (e porque compreendesse haver em tais atitudes mais amor – um amor desengonçado – do que desejo de ferir), Luísa aprendeu a divertir-se com as perguntas inocentes das irmãs:

- Luísa, devo vestir hoje o vestido verde ou o azul?

Luísa achava que era o azul, sempre. 

- De que azul é?

- Do mesmo azul que seus olhos, Luísa.

Seu maior medo era esquecer como era o azul. Porque suas mãos hábeis poderiam, quando preciso, tatear o rosto dos seus e mapear suas feições, seu feitio. Mas como os dedos de Luísa poderiam ensinar-lhe novamente o azul, se este se perdesse? Ela repassava mentalmente os azuis conhecidos: límpido e inatingível no céu sem nuvens dos verões; um pouco lúgubre na teia das veias e artérias sob sua pele transparente; aguado nas serras dissolvidas em chuva; inquietante na alma estampada sobre o espelho, quando a alma de Luísa habitava seus olhos. Se a menina se esquecesse do azul, sua própria alma estaria irreparavelmente perdida.

A mãe olhava Luísa tão quieta e pensativa, e, à força de dissipar suas possíveis tristezas, instaurava um longo falatório sobre a vizinhança, os namoricos da cidade, os preços no armazém. As irmãs se entreolhavam, sorriam complacentes: 

- Tudo azul, Luísa?

- Tudo azul.

E ela pensava que Deus, no tempo em que Ele existia, reunia em sua aura os mais impensáveis tons de azul. 

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