UMA MULHER
Ana Claudia Vargas

"Jogo as máscaras fora e me identifico comigo
que me esperava há séculos".
(Emílio Moura - Eu, no tempo)

"Você não entende? Um espelho, mesmo quebrado, guarda a imagem inteira e nítida do que somos. Mesmo estilhaçado, ele há de guardar em seus fragmentos, pequenas imagens que contém o todo. E no mundo de hoje nós mulheres já não existimos no todo. Somos apenas fragmentos, pedaços de bundas, peitos e coxas expostos em todos os lugares e vendendo o que quer que seja. Ao mundo de hoje não interessa o que vai pela cabeça das mulheres e em sua maioria, elas não estão muito preocupadas com isso. E isso me entristece...Me entristece profundamente. Sei que a questão é ampla, é infinita. Mas não quero ir muito longe. Quero ficar só no feminino. Quero me ater ao meu sexo. Às dores e alegrias do meu sexo. Sou uma mulher. Como tantas outras: uma mulher. Sem pieguismos e carregando todos os clichês que você conhece bem, sou apenas isso: uma mulher."

Ela então pára, respira fundo e recomeça.

"Quando me olho no espelho, por exemplo, vejo tanto. Tanto. Tanto que nem eu mesma posso suportar. É tanta vida. É tanto amor. Tanta beleza. Sabe, quando estou diante de mim, diante do meu reflexo, da minha outra imagem no espelho, sinto como se empreendesse uma longa viagem para o país da minha alma. E lá há tantos segredos. Segredos que são a matéria-prima do que sou. Segredos que são como a terra cultivada do meu pensamento. Os meus olhos parecem caminhos. Caminhos sinuosos que vão sempre além do que eu posso imaginar. Quando começo esta viagem, olhando no fundo dos meus olhos (é tão louco isso!), é como se eu fosse me encontrando comigo em todas as idades que já tive. Eu aos 10, aos 15, aos 25, aos 40, e por aí afora. Você não acha isto de uma riqueza absurda, de uma riqueza, por vezes, insuportável?"

Ela me pergunta, mas não deixa que eu responda e imediatamente, como se temesse perder-se de si mesma, recomeça.

"Minha boca então... Gosto tanto dela. Permita-me ser um pouco sacana: minha boca me enche de desejo. Parece uma fruta fresca, minha boca. Mas ela é muito mais que desejo. Minha boca me lembra paixão, sim; mas também me fala de revolta, de indignação, das tantas vezes em que eu tive que me colocar diante da vida de maneira agressiva. Para defender e para acariciar. Para levantar ou acalmar ânimos. Para acalentar e para entender. Para falar aos que gosto com amizade e carinho. Para me desculpar - tantas vezes; para relembrar casos engraçados - pois é preciso que se mantenha, sempre, o bom humor. Minha boca também soube se calar nas horas certas - e nem tão certas - minha boca é expressão viva do que vai na minha alma, do sentimento pulsante que reveste todo o meu ser."

Nesta hora, a mulher parece arfar e olha pela janela, como quem procura a palavra certa, o tom adequado. Em seguida, ela continua.

"Sabe, não vou conseguir dizer tudo o que penso hoje. É impossível. Me angustia. Falar do meu corpo, por exemplo... é tão complexo, pois ele parece existir além de mim. Meu corpo está tão mitificado, massificado, globalizado, eu diria; que nem eu sei onde está apenas... o meu corpo. O meu corpo meu. Meu corpo de menina magrinha que foi aos poucos se transformando..."

Ela se ajeita melhor e percebo que ela vai sim falar, não sei se tudo, mas boa parte do que a angustia.

"...neste corpo bem feito de mulher. Meus seios que cresceram demais, as formas que foram aos poucos se tornando aquela imagem que tantas vezes, eu em criança, admirava nas mulheres adultas (achava-as tão lindas). Ah, queria meu corpo assim, sabe? Livre de todos os conceitos e suposições, livre de todos os dogmas e teorias. Meu corpo, eu o queria assim: meu..."

Ela nessa hora parece tão triste que...

"...mas, ele não parece meu... ele parece pertencer a uma idéia massacrante feita de anúncios publicitários, revistas de mulheres nuas, comerciais de cerveja e das tantas outras coisas que o mundo vende. Em tudo é preciso que exista um corpo de mulher. Em tudo é preciso que exista a clássica imagem de um corpo bem torneado, com seios pontudos e bunda bem feita. Para se vender pneus, margarina, TVs, revistas, detergentes, fraldas... E eu virei só um corpo, entende? Não sou igual à estas tantas mulheres, mas sou irmã de sexo delas; e gostaria de saber de onde vêm tanta facilidade em se expor assim dessa maneira agressiva, como se nos dissessem "vejam: tenho um belo corpo. Eu sou este corpo..."

A mulher agora faz com que eu me lembre - com certa vergonha - da imagem de uma bela modelo nua que eu havia visto num outdoor de manhã. É impossível esquecer, pois a moça da foto estava tão à vontade que confesso, fiquei excitado. Mas neste instante aqui na minha frente, esta mulher que quase chora parece me dizer que há alguém atrás daquele corpo... E isto me assusta... É com voz quase sumida, que ela volta a falar.

"...é absolutamente impossível que uma mulher, como eu, se sinta bem andando por aí enquanto é bombardeada por tantas imagens de mulheres sem roupa. Não sou moralista, sabes bem disso. Já tive tantos homens. Já amei tanto. Já fiz o diabo... O que questiono, não é a moral, e sim a visão que o mundo tem de nós mulheres, hoje. Nos reduzem a corpos, entende? Todas estas moças sofrem horrores para serem aceitas no mundinho fashion e no mundindo das "modelos-atrizes". E tome academia, lipos, botox, e etc etc. Elas se deixam aniquilar. Elas se deixam reduzir a bundas e peitos e coxas, assim, na maior! É isto que me deixa triste. E aqui, eu volto à mim mesma, porque quando ando por aí, com este corpo e este rosto que tenho, sinto-me tantas vezes agredida por estas imagens que parecem me dizer, "você tem que ser assim" . Ah, e quando me olho no espelho, eu no auge dos meus 50 anos, eu que já vivi tantas revoluções, eu que li e decorei Simone de Beauvoir... Eu só posso ficar muito, muito triste, com minhas colegas de sexo..."

E ela parece ser o próprio retrato da tristeza agora. Enquanto a tarde de outono cai, tingindo os cabelos dela de dourado, acho-a tão bela. Pensativa olhando para o nada, ela fica ainda mais bonita com este ar filosófico. E enquanto ela nem imagina o que penso, e continua a falar... de súbito, seus olhos brilham intensamente, e é como se ela encontrasse de novo, sua pedra de toque, seu jardim secreto... Então, com um ar claramente rejuvenescido e luminoso ela diz: "Mas, minha tristeza me chama à ação! Não à passividade! Não ao conformismo! Afinal, por tudo que vivi e fiz, já tenho idade mais que suficiente para aceitar a vida como ela é. Mas aceitá-la não significa me acomodar. Aceitá-la não significa, entrar nesta canoa furada. Não posso me entregar assim, eu sei. Que as outras mulheres, tão mais jovens que eu, vivam o que este tempo lhes oferece. Que elas sirvam de pasto aos publicitários, ao gosto sempre superficial e vulgar destes comerciantes de imagens que só querem vender e vender..."

Engraçado o quanto ela me surpreende. Engraçado ver o quanto o olhar dela está iluminado, cheio de vida e desejo. Acho que falar faz com que ela perceba o quanto ainda é capaz de viver e se aceitar como é... E ela continua, diante de mim, mapeando sua alma...

"...hoje, falei tudo isto porque, diante do espelho e diante das minhas rugas, me achei bela... Não faça esta cara. É verdade. Sabe aquela lenda das mulheres que dizem que não fazem plástica, porque suas rugas têm histórias pra contar? Pois me senti assim, hoje. Bela e cheia de histórias pra contar. Belas histórias, claro. Me senti tão confortável com este corpo aqui, que sou obrigada a falar o clichê máximo: cada um de nós é tão especial. Por ser único dentro de todas as suas infinitas riquezas e também (e até) por seus tantos defeitos. E cada um deve fazer o possível - e se possível, o impossível - para fugir destas armadilhas, destes tantos rótulos que querem que nos colocar..."

Meu Deus, excedemos o horário em meia hora e ela continua a falar e quem sou eu pra interromper? Afinal, não é todo o dia que uma mulher longe de todos os padrões de juventude e beleza, se descobre e se declara apaixonada por si mesma, durante uma sessão de análise. Ela continua a falar e eu continuo a ouvir cada vez mais embevecido... Mas o resto não posso contar à vocês.

Que cada um - homem ou mulher - faça sua própria descoberta. Que cada um, guarde com carinho a história desta mulher que sabe ser inteira, que luta por ser inteira, mesmo quando se vê nos tortos e quebrados espelhos da vida.

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