O QUE É, O QUE É?
Doca Ramos Mello

Era um reino muito grande, que trocava de rei conforme a vontade do povo, fato que lhe conferia característica muito especial, afinal se tratava, pois, de um reinado democrático.

O povo, entretanto, tinha um jeitão meio esquisito, mestiço que se definia, donde possuidor de certa malemolência, cantada em prosa e verso por seus literatos, e que lhe outorgava forte tendência para infernais orgias carnavalescas ao som de atabaques e tamborins, uma coisa muito estranha de se ver, mas boa de se participar, segundo relatos de viajantes, a saber: "estranha" para quem tivesse o hábito de juntar dois mais dois e isistisse no resultado comum a todas as inteligências, isto é, quatro (um bardo do reino, inclusive, propagou com alarde que "dois e dois são cinco", tendo feito sucesso e fortuna); "boa" em especial para holandeses, suecos, enfim, tribos liberais e pouco recatadas, bem como adoradores fervorosos de Santa Cátia Chaça, apreciadores de um bom "rebu" (corruptela de palavra um tanto mal vista, mas largamente usada no reino, por prestar-se com acerto a situações diversas), e por aí vai...

Sei dizer que o rei foi deposto. Era um cavalheiro de letras e prosopopéia, a gente do reino não entendia bem sua verborragia, mesmo porque ele também se expressava em línguas estrangeiras, uma coisa chata e esnobe, então seu povo começou a ficar de "saco cheio" - perdão, mas a expressão era muito popular naquelas terras, mister se faz colocá-la no texto, como forma de dar autenticidade ao relato -, sem contar que havia grande decontentamento com seu estilo de governar, os juros altos, a grana curta, um tal FMI, entidade respeitadíssima por ele e execrada pelo gentio em geral...

Isso tudo terminava numa espécie de "suruba" - eis outro termo fartamente utilizado naquelas paragens, indicador de grande confusão de idéias, ideologias, comportamentos, etc. (não vamos discorrer sobre o "etc"., não convém) -, uma suruba de informações, com os arautos do rei dizendo que tudo ia bem, obrigado, enquanto a massa popular queria saber quem era "tudo" e de que modo esse tudo estaria "bem", já que as reclamações eram enormes. Enfim, um "rolo" (o reino sempre fomentou o "rolo" - rolo é rolo, percebe-se logo).

Pois muito bem, varreram o cavalheiro para debaixo do tapete real, ele e sua mulher também cheia de letras que, no dizer dos comandados, jamais fritara um bife na vida nem tirara o pó da casa, dado que se considerava uma intelectual, ainda que ninguém soubesse explicar o que, exatamente, fazia uma mulher intelectual...

Tudo colaborou para que enviassem o rei para a casa do chapéu, que ficava em Paris.

O povo escolheu outro rei, desta feita alguém a quem pudesse abraçar no meio da rua e convidar para um arrasta-pé, um pingado ou um pão com mortadela, sem constrangimentos. O novo rei ganhou o trono, um cetro, uma coroa e a condição de estrela de cinema, mas uma estrela atingível, "gente como a gente", comentava o pessoal, um cidadão acessível, portador de fala atravessada pela gramática avessa, com estilo "corinthiano" (religião fiel, preta e branca, adeptos fanáticos) de ser, alguém popular, cabra bom.

Nessa empreitada, um rol de gente de todos os tipos e vertentes fez coro e se declarou sem medo de ser feliz debaixo do poder do novo rei: moçada, idosos, ricos, pobres, trabalhadores, desocupados, donas de casa, intelectuais, poderosos, gente boa, gente ruim, os puros, os impuros, a caterva, os "puxa-saco" - perdão, de novo, mas o termo era usual naquele reino e tinha conotações múltiplas, com certa relevância no campo político. Digamos que, nesse sentido, poderia até mesmo se definir como atividade rentável, naturalmente em conformidade com a qualidade do estômago da pessoa e sua vocação para capacho -, socialites, sem-terra, sem-teto, sem-emprego, enfim, praticamente o povo todo (com exceção dos inimigos do reino, que não concordaram com a coroação do novo rei, mas tiveram de engoli-lo, seguindo os ensinamentos de mestre Zagallo, filósofo respeitado no reino por suas teorias comportamentais).

Era uma espécie de revolta misturada com esperança ou, como disse um cidadão que, depois de empossado o rei, correu para se tornar membro direto de sua corte, "uma aposta num buraco negro que ninguém sabia onde ia dar". A História conta que esse homem teve o cuidado de deixar crescer suas barbas (para assemelhar-se ao visual do rei) e comprar uma lanterna submarina, de modo que o buraco ficou mais embaixo e ele pôde reavaliar suas análises. Sujeito coerente.

Reinado novo adentro, entrementes, uma coceira forte começou a grassar naquelas terras, fazendo com que o povo adquirisse um novo e peculiar hábito intrigante... As pessoas deram para bater o pescoço com veemência, de um lado para o outro, a repetir "sei não, sei não", até que aquilo virou uma sarna sem precedentes.

A despeito da baderna que começou a se instalar por causa da epidemia de sarna, o rei, apaixonado pelo próprio currículo ("eu não sei inglês, eu não fiz faculdade") e enlevado com o reflexo de sua barbuda imagem no espelho d'água do palácio, prosseguia com seus discursos metafóricos, desprovidos de plurais e coerência. Isso tudo, porém, disseram os astrólogos, já estava previsto. Na estrela.

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