ESTRANHOS REFLEXOS
Fábio Fujita

Ela era ligeiramente estabanada, o que não quer dizer nada. Quem não derruba um pouquinho de café para além do pires ou diz "prazer" para a pessoa que lhe foi apresentada no dia anterior? E foi por tudo isso, ou quase, que ele se encantou por ela, aquele jeito dela tão autêntico, inocente, de viver, despido de preocupações formais, estéticas, rasas. Porque engraçada sem querer sê-lo, e agregadora de valor porque pueril e em muito diferente dele. Apaixonante, genuína, personalista. Uma graça que, além de tudo, vestia saia com botas, sentia cócegas nos ombros e conhecia John Fante.

Por sua vez, dele não se podia dizer estabanado, embora certa vez tenha ido parar em Cubatão quando o destino previa Paranapiacaba (excesso de soberba, talvez). Gostava de uma certa organização, o que não implicava em ser sistemático ou neurótico. Tinha idéias um tanto retrógradas a respeito da figura da mulher. Por exemplo: uma certa resistência àquelas que falavam tipo meu ou mais de quatro palavrões numa frase simples (sujeito-objeto-predicado). Um cara interessante que, além do cabelo baixinho usado com uma charmosa displicência, tinha CDs do Inti Llimani, crê?

Havia lido em algum lugar sobre o significado dos sinais no jogo da sedução e, desde então, ela passou a lançar mão dele sempre que se interessava por alguém. Com ele, foi no be-a-bá: mexer no cabelo. Ela ajeitava a mechinha que lhe caía sobre o olho esquerdo para trás da orelha e (batata!), num minuto, lá estava ele fazendo a mesma coisa no próprio cabelo, embora não houvesse mechinha alguma, afinal o corte baixinho como já explicado. O velho expediente da repetição inconsciente, como um espelho autômato de efeito retardado. Para ela, sempre era infalível. Bastava um gesto mínimo e, se no minuto seguinte o gavião estivesse fazendo igual, já podia ticar o nome dele na lista das conquistas. 

Ocorre que o jogo da sedução é inversamente proporcional à manutenção do jogo amoroso, porque só imagina-se amar, de fato, quando há admiração. Nesse admirar, o seu referencial passa a ser o outro, e você tenta se transformar um pouco naquilo que o outro é. Espelha-se nele, porque tudo nele é muito bom, e quando se dá conta, você perdeu aquelas suas características tão peculiares que ele tanto apreciava. Você passa a ser uma extensão dele, tudo porque a sua admiração foi muito grande, a ponto de incorporar características dele na sua personalidade, transformando-a. Nesse espelho literal, o amor se esfacela, ainda que com as mais delicadas das intenções.

Então, ela passa a ouvir muito mais música chilena do que descobrir outros autores geniais da literatura beatnik americana, e tudo o que fica é o layout – a tal com saia com botas, o que evidentemente é pouco. E porque ele tem uma certa organização, embora não seja sistemático ou neurótico, com o tempo ela percebe que precisa ser menos estabanada, e de repente lá está ela, no maior controle de qualidade de coordenação motora, naquela coisa de que o café pode, sim, se restringir aos limites da xícara. Fica mais atenta, reconhece cada rosto que lhe aparece à frente e, também por culpa dele, que superexplorou aquela região do corpo dela, ela acaba por perder a sensibilidade nos ombros. Como ele não é criativo para saídas alternativas, ela passa a se irritar com ele e, para tal, diz que tipo meu, que saco, hein, esse seu cabelo, que fica me pinicando, merda.

Aí eles se aturam por mais um tempo (geralmente mais uns dois meses e dezesseis dias, quando chegou nesse ponto), se separam, lamentam que não tenham dado certo, porque no começo era tão bom, tão bom. Ela conhece um terceiro, que adora o jeito estabanado dela e que mexe no próprio cabelo um minuto depois de ela ajeitar a franjinha para trás da orelha.

Vai entender.. 

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