QUEM SABE?
Iosif Landau

Acordou de ressaca, gosto ruim na boca, precisava escovar os dentes, mas em vez, retirou um Hollywood do maço e acendeu, droga preciso parar de fumar, tragou fundo, tossiu, o catarro na boca o irritou, engoliu com nojo, jogou o cigarro aceso no cinzeiro...

...se olharam, hesitantes, cada um tentando adivinhar os movimentos do outro, o aparelho do ar condicionado zunia, parecia–lhe o ronronar de gato, o corpo nu e lânguido sobre a colcha em desordem, convite ao amor, moreno, harmonioso, seios de adolescente, já tivera outras mulheres mas com seios assim nunca, sabia que seriam assim, dias atrás num encontro casual se conheceram, seus olhos o intrigaram, escuros, risonhos, cintilantes, a puxou pra si num abraço quase fraternal, protetor, ao se separarem ele já a desejava, em segundos se rendera, o calor do seu corpo atravessara as vestimentas, o penetrara, ao afastar–se a examinou, fixou o olhar nas pequenas quase invisíveis saliências na blusa, desceu a visão, ligeira pausa nos jeans, não decepcionou–se , encontrou o olhar dela, parecia dizer “acabou o reconhecimento? se não gostou se dane, você é meu”, ao sentar–se junto dela, as pernas se tocaram, um frisson o atravessara... agora tenso, cada músculo, cada nervo esperando, um beijo, preciso beijá-la, os lábios se uniram, fluxos de desejo fluíram, língua e saliva se uniram, acariciou os cabelos dela, o rosto, os ombros, a mão queimava na pele aveludada, os lábios se separaram, desceu com eles pelo pescoço, se deteve nos seios por instantes, seguiu a curva do ventre... seu desejo insano, o conduziu, afogou-se nela...

...meu amor, retornei à minha vida de sempre, mãe, esposa, reuniões de trabalho, campanha contra a fome e miséria, sei que não se motiva muito com isso, como também sei que não por ser preguiçoso, é tímido, só não foi tímido comigo, graças a Deus, e como você é inseguro, precisei te assegurar seguidas vezes que me fez feliz naquela tarde, fazer amor com o homem que a gente ama nos liberta, não sou mulher que mente a quem eu amo, como mentiria para uma criança ou para um doente grave. Te admiro muito e você é instruído e vivido, mas talvez você ainda morra sem ter se dado conta que mulher também é ser humano, parece que vejo seu rosto contrariado, não é culpa sua, é gentil, educado, sua geração foi criada com conceitos que nos menospreza, nos marginaliza Sempre lidei com homens que me acharam feminina, que se esforçaram para me dar prazer, mas eu sei que ao se reunirem com amigos se vangloriavam ter-me possuído. Não conteste, sei o que digo. Encontrei em você ternura, foi o que me cativou, que me fez te amar, mas querido, não pense que por isso te pertenço. Recuso-me de ser apenas um corpo, sei que o homem se orgulha da conquista. Não me é fácil defender-me contra o que os homens pensam ao se deitarem comigo. Preciso me saber independente. Ontem numa reunião noturna de trabalho reencontrei antigo namorado, bebemos chope, você sabe como gosto de chope, acabamos nos beijando, não resisti, tentei pensar em você, não adiantou, acabamos a noite num motel. Não fique triste, não foi amor, apenas o acaso, você sabe que eu te amo...

Lera a carta dezenas de vezes, escrevera mentalmente dezenas de respostas, sabia que ela jamais entenderia suas palavras, dar o corpo a outro mesmo amando ele nada significava para ela, o corpo lhe pertencia e faria o que bem quisesse, viva Woman´s Lib, a liberdade da mulher. Como convencê-la que o corpo de mulher é um altar, que o homem que ama e entrega seu amor na profundeza de seu sexo úmido é um ato de contrição, de rendição, palavras rolavam na cabeça dele sem cessar, como expressar sua dor, seu desespero, sua impotência diante do fato consumado, imagens o atormentavam, via sem cessar ela agarrada a um homem que não era ele, seu rosto em êxtase, ouvia até o gemido do gozo final, o esperma de um estranho inundando o solo sagrado... acendeu um cigarro, tragou profundamente, quero o câncer, quero sofrer, quero morrer, seria minha vingança, jogou o cigarro no cinzeiro e começou a rir, porra, se mulher não se respeita por que eu sofro tanto, alguém uma vez falou: boceta de mulher é deposito de esperma!, parou de rir, detestou a grosseria, não ria, nem sorria mais, olhou pela janela, o céu era cinza, cor de chumbo, cor que anunciava tempestade de verão, amassou a carta e encaminhou-se à janela, fez o gesto de arremessar, parou, desamassou a carta, voltou à beira da cama... não fique triste, não foi amor, apenas o acaso, você sabe que te amo.. ela podia não ter escrito nada, nunca saberia, já tivera muitas amantes, nada garantia que elas não o tivessem enganado, mas ele enquanto amava nunca as traíra, respeitava o amor, mesmo as prostitutas que amara, as que vendiam amor, você é meu homem, os outros é o “trabalho”, ele sorriu, tinha com elas um trato, seria o primeiro do dia, sou virgem para você, que mulheres extraordinárias... mas por que ela me contou? reafirmação de independência? vingança, ódio ao ser homem? será que todas fizeram um juramento, tipo morte ou independência? pareceu-lhe infantil, ela não era, é inteligente e instruída... levantou-se, caminhou até o bar, serviu-se de uma dose de Ballantine´s, a bebida queimou na garganta, o deixou sem fôlego, abandonou o copo... por que não a abandono? não tento esquecer? tem fila à espera... tinha nada, ilusão de quem já viveu demais, valeria a experiência derradeira? que tal suprimir o sexo? a alma dele, o corpo de outro?... estou fugindo da realidade, não resistiria, me contentar apenas com a amizade? por que argumento comigo mesmo?... ele socou a parede, a mão doeu... merda! por que não reconhece o óbvio? é sua impotência, seu membro atrofiado, ela é mulher sadia... mas ele nada lhe escondera, se lhe falara “te amo assim mesmo, a penetração não importa, me fez feliz ao seu modo” teria que acreditar, ao lhe revelar o “acaso”, por que mentiria no restante? sua cabeça doía, sentiu o ar lhe faltar... será que a amo ou é apenas orgulho ferido? tentou falar em voz alta te amo, as palavras não saíram, represadas na garganta, pegou a caneta e tentou escrever na palma da mão te amo... que idiotice... deixou cair a Mont Blanc, lembrou-se de algo dito por um francês, “l´histoire du bouchon qui se croyait tellment plus important que la bouteille”, é isso, a historia da rolha que se achava tão mais importante que a garrafa... essas liberadas são apenas rolhas... achou a frase estúpida, soava bem apenas em francês, procurou por um cigarro, o maço estava vazio... 

...– um Hollywood verde – pediu ao entrar no pé sujo – e um café!
– ei coroa! tu tá com uma cara! sabe da última? aquele cara do 54, a mulher dele se mandou com o love dela, o paraíba da portaria. Corno manso!

Deu um gole no café, acendeu um cigarro, levantou a cabeça cansada, espelho gretado no fundo, em cima da pia suja, viu um rosto vincado, barba branca, um velho, era ele? 

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