O ESPELHO DE CAIM
Luís Valise

 
 

A coisa começou bem no meio da novela das oito, e Heleninha nem sentiu a primeira pontada. O segundo aviso doeu como um clarão, e retesou o corpo de Heleninha num espasmo que o deixou rígido de encontro ao encosto do sofá. Ela só teve tempo de chamar: 

- Evilásio! Evilásio, vem logo, puta que pariu!

O marido saiu do banheiro abotoando as calças, e ao chegar na sala viu a mulher muito pálida, lábios sem cor, olhos arregalados, as pernas abertas, sentada na diagonal do sofá, um fio de voz cheio de medo:

- Chegou a hora, estourou a bolsa, me leva, me leva!

Ajudou a mulher a se levantar, andar até o carro, sentou-a no banco da frente, voltou pra buscar a mala que já estava pronta, e saiu a toda para o hospital. Chegaram buzinando, os enfermeiros vieram com a maca e levaram Heleninha. Antes, ela perguntou:

- Você fica comigo?

Evilásio empalideceu, gaguejou que não podia ver sangue, tinha medo de desmaiar, ia esperar do lado de fora. Ela disse com desprezo:

- Frouxo!

Algumas horas que pareceram uma eternidade. Evilásio retorcia as mãos, caminhava até a janela – se ao menos fumasse! - olhava a noite escura, ventre que paria um sol todas as manhãs, rezava para que a criança viesse sã, quando uma enfermeira chegou:

- Parabéns! Dois garotões fortes e saudáveis!

Antes mesmo de ficar contente, Evilásio pensou no salário, prestações do carro, mas esqueceu-se no mesmo instante em que viu os bebês pelo vidro do berçário. Um dormia placidamente, o outro chorava a todo vapor. Evilásio não gostou muito, chorar sem motivo, onde já se viu?

Depois, no quarto, passava a mão nos cabelos da mulher, que descansava, exausta, quando a enfermeira entrou trazendo os garotos. Agora os dois dormiam, e Evilásio não reconheceu seu preferido. Heleninha acordou, recebeu um filho em cada braço, beijou-os na testa. Depois, olhando o marido, pediu desculpas:

- Foi sem querer. Você não é frouxo, não.

Os nomes foram escolhidos pela mulher. Ele não queria, mas ela foi inflexível: - Vai ser Evilásio, sim senhor. Um nome muito bonito. E o outro, Erivélton. Já que não tinha jeito, jeito não tinha, e o que tinha o choro mais forte ficou sendo o Júnior.

Heleninha não reclamava mais da falta de dinheiro, do bairro distante, da rua de terra, do salário minguado do marido. Encantada com as crianças, Heleninha estava feliz. Chegavam vizinhos, chegavam parentes, todos para ver as crianças idênticas, e um dia chegou uma pneumonia, ninguém sabe de onde, e não teve jeito, nem reza, nem remédio: Erivélton morreu em uma semana.

A morte traz tristezas e rugas, e depois de um mês Heleninha era uma mulher triste e enrugada. O Júnior crescia forte, sadio, enquanto sua mãe parecia diminuir de tamanho, enfiada em roupas pretas, cara enfezada, blasfemando contra Deus e todos os Santos. Evilásio conseguira aumento de salário com a chegada dos gêmeos, mas nem com o dinheirinho extra a mulher voltou ao que era. 

Depois de alguns anos, Evilásio entendeu por que o Júnior chorava tão forte ao nascer: era mesmo um chorão. Apanhava de todos os meninos da rua, chegava em casa estropiado. Heleninha lamentava a perda do outro filho:

- Se ao menos o Erivélton estivesse aqui... Aquele sim, puxou a mim. Você saiu um banana igual ao seu pai. E quando o pai chegava do trabalho:

- Apanhou de novo? Você nasceu mesmo pra chorar... Teu irmão era calado mas não era bobo!

Heleninha buscara refúgio novamente nas novelas. Evilásio não reclamava, mas também não ficava em casa, e vivia no bar da esquina. Júnior odiava a mãe, o pai e o tal de Erivélton.

A lua-de-mel fora maravilhosa, a vida estava maravilhosa, e podia continuar mais um pouco assim, mas Nicinha queria filhos logo, e estavam ela e Evilásio Júnior sentados defronte ao médico, quando este deu a notícia:

- Parabéns, vocês vão ter gêmeos!

No caminho de volta Nicinha falava sem parar. Evilásio Júnior dirigia em silêncio. Gêmeos...

-... Lazinho, o que você acha?

- Hein?

- Um vai ter teu nome. Evilásio Neto.

- Deixa de ser cafona.

- Cafona, eu?? Cafona é tua mãe, com aquelas roupas de carpideira!

Carro na garagem, Nicinha apertou o 12. Evilásio apertou o Térreo, e justificou: - Vou até o bar da esquina. 

Os pais de Nicinha exultaram, as irmãs providenciaram chás-de-bebê, cuidavam dela como se ela fosse criança. Os pais do Evilásio ensaiaram um sorriso, deram parabéns, e mais nada. Nicinha explicava à família:

- Sabem como é, gente humilde...

Nicinha acordou sentindo frio nas pernas, passou a mão no lençol, ensopado! Acendeu a luz do abajur, Evilásio não estava ao seu lado! Gritou:

- Lazinho! Evilásio! Silêncio.

Levantou-se com dificuldade, foi andando meio de lado, o resto do apartamento estava escuro. Aonde ele tinha se metido? Estava suando, foi ao banheiro lavar o rosto. Acendeu a luz. O marido estava enforcado no cano do chuveiro. Antes de desmaiar ela ainda viu um bilhete grudado no espelho:

- Chama o Erivélton.

 
 

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