O ESPELHO, EU E VOCÊ
Luiz André B. R. Cavalcante

Temos hoje, eu e meu espelho, um acordo de cavalheiros. Combinamos assim: eu não tento parecer mais bonito do que realmente sou e, em compensação, ele não tenta me mostrar mais defeitos do que eu realmente tenho. Nem sempre foi assim. Na adolescência, por exemplo, o espelho se mostrou desleal. Estiquei, emagreci, e cresceu o meu pomo de adão; meus dentes ostentavam aparelhos; pêlos ralos, canhestros, nasciam-me no rosto e deixavam-me a meio caminho entre a meninice e a fase adulta. Meu espelho, na época zombeteiro e indiferente, tratou de me mostrar tudo com um certo exagero. 

Hoje nós nos damos relativamente bem. É bem verdade que há fases de briga, de desrespeito ao acordo. Tem dias que eu quase me pego a gritar para ele: “Me devolva, me devolva!”, porque para mim está claro, de alguma maneira, que aquele homem no espelho não sou eu. Eu estou em algum lugar, mas não ali. E eu quero eu mesmo. O pior é que às vezes ele só me devolve muito tempo depois, o descarado. Mas também ocorre de eu surpreendê-lo: quando ele menos espera, eu apareço, elegante e bem cuidado, numa boa. Nessas horas ele fica atônito.

O espelho é frio, hão de dizer, e só nos mostra o que realmente somos. Não sei, não sei. Quem nunca se sentiu enganado pelo espelho? A verdade é que o espelho não é tão frio, tão rigoroso quanto parece. Às vezes o espelho é parcial. O problema é que o espelho não tem concorrência. (Os únicos que poderiam ser considerados seus concorrentes - a fita de vídeo e a fotografia - nem sempre estão à disposição. E nunca, que eu saiba, estão no banheiro.) O espelho detém o monopólio de nossa exploração – e, como é natural, muitas vezes extravasa de seu poder. Por isso é sempre melhor tentar entrar em acordo com ele. Convivência pacífica. Você me trata com lealdade e eu não quebro você. Estamos resolvidos.

A verdade é que você não deve dar muita ousadia ao espelho. Imponha-se. Não aceite tudo o que ele lhe mostra. Se for o caso, ameace-o, diga que vai comprar outro. Ou então dê um cano nele, passe o dia inteiro sem visitá-lo. Eu garanto: ele vai sentir sua falta. E aí, sim, você terá poder de barganha.

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