AS OLVIDADAS FUNÇÕES DO ESPELHO
Raymundo Silveira

Alguém seria capaz de enumerar meia dúzia de objetos comuns que desempenhem funções tão ecléticas e imprescindíveis quanto as de um espelho? É possível que sim, mas duvido que seja uma tarefa muito fácil. Tentei fazer uma associação livre com um espelho e a primeira palavra que me ocorreu foi vaidade. Isto sucedeu apenas porque é esta a sua serventia mais freqüente, mas também a menos significativa. Vamos imaginar como seria a nossa vida sem este singelo refletor de imagens, começando por aqueles papéis que ele presta e que menos chamam a atenção. Quando eu tinha cerca de oito anos de idade, meu pai me levou ao Parque Shangai, e foi exatamente a Sala dos Espelhos aquela que, não apenas mais me divertiu, mas também mais me deu o que pensar. Foi o primeiro lugar onde constatei um fato que — embora alegoricamente — me trouxe uma lição: os seres humanos nunca são aquilo que aparentam ser! Na sala dos espelhos do parque todos mostravam fisicamente aquilo que o seu caráter refletia no plano psicológico. Ali, indivíduos altos pareciam achatados; gordos se tornavam longilíneos; magros, brevilíneos; mulheres lindas se transformavam em bruxas repugnantes e assim por diante. Assim, apesar dos meus escassos oito carnavais, consegui interpretar que cada um de nós reage também, como se estivesse diante de um espelho deformador de imagem, perante situações diversas. Uma simples frase de Miguel de Unamuno é capaz de resumir tudo o quero dizer agora: "Nós não somos somente nós: nós somos nós e a nossa circunstância". Pois muito antes de sequer ouvir falar em Unamuno, eu cheguei, literalmente por vias tortas, a esta mesma conclusão, freqüentando a Sala dos Espelhos do Parque Shangai.

Mais tarde, já em plena puberdade, consegui descobrir outra função menos filosófica e mais prosaica para um espelho. No final da década de 1950, todos os meninos da minha idade conduziam obrigatoriamente nos bolsos — como quem leva hoje a chave do automóvel ou o passe do ônibus —, dois objetos: um pente e um minúsculo espelho redondo que trazia no verso a fotografia de uma mulher bonita e famosa; geralmente a de uma atriz de Hollywood. Nunca tinha ouvido falar a palavra narcisismo mas intuía muito bem que aquele comportamento tinha um significado equivalente ao daquela palavra. Eu me mirava naquele espelho umas dez ou mais vezes durante o dia. E mais, acreditava que era bonito e que aquela figura radiosa de mulher era a minha namorada. Se considerarmos ser possível existir paixão virtual sem Internet, para todos os efeitos o meu primeiro amor foi a Ava Gardner, embora, logicamente, se tratasse de um sentimento absolutamente unilateral. Mas, e daí? Não dizem os entendidos — Drumond entre eles — que o amor independe de se ser ou não correspondido? Se duvidarem, vejam estes versos do poeta:

"Eu te amo porque te amo
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
"Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

"Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

"Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor."

Então, para todos efeitos e com o nada desprezível endosso de Carlos Drumond de Andrade, o meu primeiro amor foi mesmo a Ava Gardner sim, senhoras e senhores. Graças a um minúsculo espelho redondo. Ou ainda há quem duvide?

Depois disto ainda preciso falar mais alguma coisa? Será necessário lembrar as funções cirúrgicas, odontológicas, cosméticas, cabeleireiras, e centenas de outras mais de um espelho? Pois preciso, sim. Ainda naquele tempo longínquo da minha adolescência, o meu espelhinho redondo — com a Ava detrás dele e tudo mais — ainda me servia para exercitar o mais do que excitante, delicioso e competitivo esporte da brecha. É que naquela época, meio palmo de coxa valia mais do que a Luma de Oliveira completamente nua na avenida. E era com o meu espelho — posto na ponta da minha alpercata (vai para os dicionários, turma da geração virtual) — que eu e todos os outros meninos do meu tempo costumávamos disputar entre nós quem primeiro descobria a cor das calcinhas das meninas.

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