A BOCA DA GAL
Regina de Souza

Ele vem em minha direção. Sem titubear, cubro o rosto com braços e mãos para me proteger de seus talhos inevitáveis. A água, relaxante, morna e antes tão límpida que escorre pelo meu corpo nu transforma-se num rio vermelho. Fui atingida. Onde? Cadê a dor? Começo a conferir... tudo bem com os pés, pernas, mãos... achei! Sangue pingando pelas pontas dos dedos de minha mão esquerda, mas ela está intacta! Olho os punhos, braço, antebraço... encontro a fonte imediatamente acima da face externa de meu bíceps. Um talho enorme de quase dez centímetros me surpreende, enquanto jorra por ali o precioso líquido. Amoleço, só de ver. Eu, na medicina, imagine! Um desfalecer a cada incisão. Catástrofe esse sangue todo, mas me acalmo. Temos que nos manter calmos após um incidente com vítimas. Só agora começa a surgir um leve ardor no local do corte. Caramba! Isso é hora de alguém bater na porta do banheiro? Chuveiro ligado, ouvido zumbindo e mal identifico o que a voz abafada tenta me dizer. Giro a torneira com medo da quantidade de sangue que estou perdendo. A toalha de rosto! Isso! Cubro o corte enorme com ela, antes de abrir a porta. Minha mãe, aflita com o som de vidro quebrado que acabou de vir do banheiro, tenta empurrar a porta para entender o que houve.

- Nada, mãe... não foi nada! Só o espelho que escapou da parede e caiu em mim. Fez um cortinho no meu braço, mas tá tudo bem! - respondo, pálida. 

Mas mães não entendem "cortinhos" e ela empurra a porta, desconfiada. 

- Claro que houve algo feio ou você não estaria segurando essa porta com tanta força! - diz quase gritando, provocando o choro de minha sobrinha de menos de um ano que está na sala, e o choro da menina provoca latidos da cachorrinha que também está na sala, numa seqüência de sons aflitos que não combinam com a calma que estou tentando manter. 

Visto o robe, calço o mocassim e comprimo a toalha contra o corte. Assim chego ao hospital, levada por uma vizinha descabelada e de calças jeans arregaçadas, porque é assim que as vizinhas se vestem, enquanto estão lavando um carro. Somos atendidas prontamente, creio que pelo fato dos convênios não serem muito adeptos a ter em seu saguão de recepção pessoas trajadas da forma que estamos. 

- Onde arranjou essa "boca-da-Gal", moça? - pergunta o médico.

- Espelho! - respondo sorrindo, pelo prazer de ter estampada em mim a boca de minha cantora preferida.

- Hummmm... corte grande! Vai levar muitos pontos aí, moça do sabonete Phebo!... risos.

Dia seguinte. Com 32 pontos de plástica e o braço apoiado numa tipóia, me encontro com Cris-amiga-velha-de-guerra. Grande Cris, que descolou ingressos para o show de Caetano com a facilidade de quem entorna um copo d'água. 

- Meu nome é...! - grita Caetano, lá pelo meio do show.

Em meio a aplausos surge a boca de Gal, vermelha, trinando pássaros, costurando sons, cicatrizando dores. 

Fim do show. Camarim, confusão, Cris e eu na fila boba... à toa, na certa. Eu sabia! Eles não nos receberiam naquela noite. Alguém, muito colorido e afetado, avisa: 

- Caetano não está se sentindo bem, genteee!!!!...N ão receberá ninguém... sem autógr... - reboliço se forma enquanto Caetano vai saindo apressado, protegido por seguranças imensos e com Gal atrás. Eu, igualmente envolta por uma enorme e aflita Cris, sou sacudida por um fortíssimo safanão que acerta exatamente meu braço na tipóia. Dou um grito de dor!

- Me desculpe, querida! - diz a boca vermelha de Gal, nordestinamente. 

- Não foi nada! - responde em mim a boca-irmã daquela, dolorosamente. 

Espelhos... Deus me livre!

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