ESPELHO
Reinaldo de Morais Filho

Na bebedeira, de frente ao espelho, Ana sentiu que não seria como a mãe, percebeu a verruga que lhe subiu do sinal negro, o borrado escuro da pele que escondia o rubro, os lábios secos que lhe afastavam o beijo.

E a mãe linda, arrumando os cabelos no jardim, lá embaixo, sustentando em parcos panos os seios fartos, amparando nas calças curtas os contornos todos que lhe preservavam a idade.

Lembrou das noites mal-dormidas, do cafuné carinhoso na cabeça, das milhares de promessas repetidas de que seria bela quando crescida; e das aulas de genética a lhe carregar esperanças.

E entre a ira da revolta e a fraqueza da constatação, cuspiu na privada um vômito teimoso, engoliu em um gole único meio litro de cachaça - e no canto baixo do reflexo, viu o coração lhe querendo saltar do corpo magro.

Cuspiu na própria cara refletida, cuspiu em direção à mãe - e engoliu litro e meio de vontade de matar a quem ofendeu com saliva.

Bebeu a última dose de bebida e quando se viu quase só, quase triste, enfiou a garrafa por dentro de suas entranhas, sentiu prazer, gozou sem dúvidas, desejando ser uma princesa como a mãe - ou ter a mãe como princesa.

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