VÔO
IMAGINÁRIO

Ana Claudia Vargas

De cima as coisas não são tão feias. Daqui do alto as coisas não são tão miseráveis.

Voejando acima da aparente normalidade de tudo, eu me sinto como estes seres irreais que os homens desenham com seus pincéis. Tudo chega até a ser engraçado. Tudo uma grande comédia. 

É bom poder estar aqui acima de tudo. Estou acima, mas isto não significa superioridade, apenas a possibilidade da visão ampla. O dom de ver além dos julgamentos humanos – sempre tão limitados - além dos dizeres falsos e superficiais dos homens.

Aqui o perfume das flores é inebriante e o céu é tão azul que parece sempre iluminado. Por vezes tanta luz cega meus olhos e quando eu os fecho vejo milhares de luzinhas piscando... piscando... até a próxima flor, até o próximo arbusto... até onde minhas asas agüentarem me levar. 

Minhas asas guiam minha alma e minha alma move meu desejo. Esta união faz de mim uma criatura livre como todos querem ser. Como todos que andam lá embaixo querem ser.

Mas, não pensem que foi fácil chegar até aqui. Não foi fácil o caminho que me trouxe à estas alturas, não foi fácil me transformar neste belíssimo ser alado.

Não foi.

Quando eu rastejava aí pelas alamedas do mundo, eu aquela lagarta horrorosa, eu aquele ser vil e imundo... Oh, quanto sofri nas mãos do mundo lá embaixo: o mundo é cruel com os que, como eu, rastejam e imploram migalhas. O mundo pisa e trata terrivelmente mal os que, como eu, andam rastejando pelos solos das cidades, mendigando dinheiro, amor, afeto, amizade, respeito, carinho... Oh, o mundo nos trata mal. O mundo não nos ignora, pois somos fétidos e horríveis - nossa feiúra nos confere sempre um ar de inadequação - nós, os feios, estamos e estaremos sempre nos lugares errados.

Por isso, eu sofri tanto que nem podes imaginar. Todos me desprezavam. Todos me negavam um sorriso, um cuidado. Todos me viam como escroque: o pior da raça, a pior das criaturas. Quando eu me escondia nos matagais, entre as flores e as ervas para não ser vista e pisada sem piedade, eu o fazia com tanta ânsia, tanto medo... Eu rastejava desesperadamente para que os humanos não me vissem. Pois sei que as mulheres gritariam e os homens viriam para me matar e as crianças, pobrezinhas, nunca quis machucá-las; as crianças eu sei, sentiriam pavor indescritível só de me ver.

Mas, eu... eu nunca faria mal aos homens. 

Foi me dado o direito à vida. Deus me concedeu este direito como concedeu a eles, homens. Mas os homens não pensam assim. Eles não vêem o todo. Apenas vêem os detalhes visíveis e são guiados por conceitos que não entendo, pois não sou gente.

Os homens reduzem tudo ao visível e se guiam apenas pela beleza aparente, pela riqueza aparente e assim, ad infinitum.

E como eu era feia. Feíssima. Horrível mesmo, eu era. Digna de dó. Digna de asco. Mas eu tinha um trunfo que os homens – na sua maioria - não tem: eu amava a vida. A vida à mim concedida por Deus: eu a amava e sabia que haveria, em certa parte da minha vida asquerosa, um momento no qual eu me ergueria incólume sobre o solo e rumaria para o alto com minhas asas brilhantes e jovens. 

Por este momento, eu rastejei cada dia dos meus dias de lagarta, com uma imperiosa vontade de chegar ao azul dos céus, ao meu lugar de direito!

E não me importei com as tantas pedras do caminho, com os animais ferozes – meus cruéis predadores – com as mudanças de tempo, e fui, na solidão dos meus dias, erguendo meu casulo, erguendo minha casinha quente e confortável, o lugar sagrado do qual eu renasceria para o instante mágico do vôo!

E foi assim que me transformei nesta linda borboleta. Foi assim, com calma e resignação que fui tecendo meu novo caminho. Quando eu rastejava e olhava para os céus, sabia que um dia estaria aqui voejando, “borboleteando”, como dizem os humanos, aspirando este vento úmido e fresco que vem das montanhas, que vem dos mares distantes, que vem dos lugares desconhecidos do mundo.

A mim foi concedida esta honra! Eu fiz por merecê-la. Vivi minha vida de lagarta com determinação e dignidade e agora vivo minha vida de borboleta com os mesmos sentimentos. 

Mas, olhando para o mundo dos homens daqui de cima, eu só posso sentir pena quando vejo as milhares de “lagartas” que há entre os humanos. 

Sim, pois há aquelas mulheres mendigando ali nas ruas, estas crianças sujas dormindo sob o lixo, aqueles homens traficando almas e corpos e mais adiante, dentro dos lares, as pessoas preferem olhar para uma caixa preta que fala sem parar a se olharem nos olhos...

Não é estranho? 

Há um mundo amplo e possível aqui em cima. Amplo e azul. Amplo e luminoso. 

Por que elas não vêem?

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