V.I.P.
Daisy Melo

O céu pouco a pouco mudava de cor. Passava do tom violeta dos últimos raios de sol e mesclava-se com o cinza das nuvens densas que transformavam-se ora num dragão ora numa flor despetalada. O vento rodopiava algumas folhas secas que bailavam desengonçadas e o ar morno, pesado, transbordava pelos poros. Ela adivinhou --— tempestade — e fechou a janela com dificuldade por causa da força do vento, não antes de permitir a entrada de uma pequena borboleta que procurava abrigo. 

Era amarela e voou tonta por alguns instantes. Pousou esgotada na taça de cristal que aguardava solitária na mesa do jantar.

A mulher arrumou o prato de porcelana inglesa com desenhos azuis, herança da avó irlandesa, alinhou os talheres de prata em perfeito ângulo com o guardanapo e sentou na cabeceira, acariciando levemente a toalha de linho. Esticou aqui e ali rugas imperceptíveis e então, enxotou da taça, com as pontas dos dedos, o pequeno inseto que voou assustado, formando círculos imperfeitos, indo descansar finalmente na cúpula do abajur ao lado do sofá. 

Grossas gotas de chuva começavam a desabar e o vento intenso batia nas frestas das venezianas produzindo toques secos. Dentro da casa escurecia. Acendeu a luz do abajur, assustando o pequeno inseto que rodopiou num desespero surdo, pousando dessa vez na Vênus de Milo — estátua horrorosa — implicou a mulher, servindo-se do vinho tinto. 

Deve ser uma velha e cansada borboleta, pensou. Velha, cansada e à espera. Tomou um gole de vinho, sentiu um leve entorpecimento. A cabeça latejava uma dor fina, TUM-TUM. Olhou com atenção e reparou pequeninos veios negros mesclando-se com inúmeros matizes amarelos que formavam várias imagens na parte superior das asas. Era meio psicodélica aquela borboleta. E linda apesar de velha e cansada. Lembrou da sua vida descolorida e translúcida, do seu coração seco e retalhado como o desenho nas asas e suspirou doído e triste. 

Com cuidado pegou-a nas mãos. Estreitou-a no escuro de suas palmas e ela se aconchegou no quentinho da caverna de carne. A mulher sentiu uma paz como há muito não sentia. Ficou feliz em proteger da chuva aquele ser tão pequeno. Pensou em como tudo é transitório e nas surpresas que surgem — como a visita daquele inseto -— esparramando cores no nosso pequeno e desbotado pedaço de vida. Abriu levemente a mão e deixou-a escapar. Agradecida, a borboleta voltou a se acomodar na taça de vinho e balançou as asas como se dançasse. A mulher sorriu, pegou outra taça, saudou a amiga, mandou servir o jantar. Já tinha convidada.

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