A BORBOLETA
(OU À MODA DE BORGES)

Luiz André B. R. Cavalcante

Dizem que a borboleta Aminutis eurilochus tem nas asas, desenhado, o mapa que leva até o céu. É um conjunto de listras quase imperceptível, como se fossem estradas de barro que aparentemente se perdem (bifurcam-se, trifurcam-se) no ventre da borboleta. Não é fácil aceitar a idéia. De fato, não é simples - nem ortodoxo - acreditar na existência de um mapa que leve até o céu. Mais difícil ainda, e alarmante, é aceitar o dado lógico de que um mapa pressupõe, evidentemente, a existência real, palpável, de um caminho. 

Toda a humanidade sempre acreditou que o único caminho para o céu (o único e certo) era a morte. Assim como “quem tem boca vai a Roma”, quem tem vida vai à morte (embora a morte seja, na verdade, apenas a metade do caminho: ela mesma se bifurca e pode levar tanto ao céu quanto ao seu oposto). Mas a verdade é que parece que há um caminho, aqui na terra, que leva até o céu. Uma trilha, a ser percorrida por pés humanos, pés cotidianos, mesmo medíocres. Os sumérios já o referiam, mencionando as cifras nas asas da borboleta, e, parece, os fenícios também, num texto obscuro e mal traduzido (e, talvez, recheado de interpolações). De qualquer modo, não há relatos, mesmo nessas culturas, de que alguém tenha feito o caminho e voltado para contar qual o aspecto dos anjos e das terras do céu.

A borboleta, hoje, está quase extinta. Aliás, está virtualmente extinta, pois durante mais de meio século os especialistas a procuraram, sem sucesso. Uma pena, porque a primeira tradução do manuscrito sumério alusivo ao mapa só foi concluída há pouco menos de uma década. O texto fenício é de tradução ainda mais recente, embora tenha sido encontrado há muito mais tempo (disputas subterrâneas entre dois museus famosos, com o envolvimento burocrático de um governo cujo nome não se declinará, impediram a divulgação e o estudo do texto no tempo que seria desejável, e o pior: contribuíram para a propagação dos boatos referentes às interpolações).

Há alguns desenhos toscos da borboleta, que carecem de maior rigor científico. Duas reproduções, porém, são consideradas rigorosas, e fazem parte do Compêndio dos Insetos do Mundo, da autoria do naturalista francês Pierre Roger, que, no século XIX, percorreu o mundo inteiro na tentativa de catalogar todos os insetos existentes na face da terra (mal sabia o pesquisador que o número que ele supunha existente era, na realidade, muito inferior à milésima parte do verdadeiro número de insetos do mundo). No Compêndio, como se disse, há dois belíssimos desenhos da Aminutis (dizem os especialistas que, em rigor, não são desenhos de uma mesma espécie, mas de espécies distintas, diferenciadas por mutação) que permitem ver, em detalhes, os veios, as pequeninas estradas que se bifurcam e trifurcam junto ao seu ventre. O problema das reproduções é que, apesar de ricamente detalhadas, não permitem ver nas asas da borboleta o mapa completo: o autor dos desenhos, por desconhecer o tesouro que tinha às mãos, e por um costume muito em voga na época (dizem que para conferir naturalidade ao objeto desenhado) optou por um ângulo, nos dois desenhos, em que aparece apenas uma das asas da borboleta, e não as duas, o que, segundo os textos antigos, seria essencial à decifração do enigma. 

Toda a discussão em torno da borboleta, a par de fascinante, parecia, até o mês passado, fadada a caminhar para um único caminho: o da inutilidade (ou, no máximo, o da mistificação). Mas este mês a revista Nature publicou um ensaio que vem deixando os entomologistas em alvoroço. Segundo o autor do ensaio, o biólogo Arjun Keel, da Universidade do Melbourne, uma colônia de Aminutis foi encontrada na cidade de Jaramataia, no interior de Alagoas. Um agricultor, cujo nome não é conhecido, teria encontrado dezenas de Aminutis, vivas, escondidas dentro do tronco oco de um mulungu doente. Recolheu algumas delas e as levou ao único “entendido” que conhecia, um fazendeiro da região, que coleciona borboletas desde a infância. O fazendeiro, como nunca tinha visto a espécie, tratou logo de ficar com uma das borboletas, e enviou as outras à Universidade Federal de Alagoas, onde foram catalogadas. Daí para a notícia chegar aos ouvidos dos especialistas de todo o mundo foi rápido.

O curioso da história é que o agricultor que encontrou as borboletas, perguntado sobre o porquê de ter sentido curiosidade por elas, já que não são poucas as variedades da região, explicou que os insetos tinham nas asas – foram quase essas as suas palavras – os insetos tinham nas asas o que parecia ser um caminho de barro ali perto, um caminho cheio de pedras, seco e ensolarado, que mais lá na frente se dividia em dois e que nem ele, nem ninguém que ele conhecesse, jamais tinha seguido.

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