NON PASSARAN!
Bárbara Helena

Era um dia qualquer, como os outros. Mas as rugas vieram desmentir e frase clichê. Duas, ao lado dos olhos claros, simétricas, cortando a perfeição da pele lisa.

Como a natureza pode ser tão cruel? ... manda o telegrama da velhice, sem aviso prévio. Bem que desconfiara dos fios brancos que apareciam sorrateiros no cabelo louro. O que fazer? Apaixonar-se urgente, aproveitar a beleza para comprar amor, antes que se tornasse apenas um retrato? Tentar um creme milagroso, fazer plástica, ler romances eróticos , experimentar formicida? Pedir emprestado o gato e aprender a fazer tricô? 

Nada disto.

Tomou um banho de princesa, sais aromáticos e leite de cabra indiana. Toalhas felpudas a envolveram. Com capricho enrolou, secou e escovou os cabelos dourados até ter uma aureola de romance cor-de-rosa ao redor da cabeça.

Depilou-se cuidadosamente, à brasileira. Arrancou uns invisíveis pêlos das pernas e axilas, deixando a penugem loura das coxas grossas e dos braços macios.

A calcinha cavada, o sutiã combinando, a pele alva se destacando no espelho, seios empinados pelo efeito das taças de renda. 

Maquiou-se com cuidado, algo a mais retocando o rosto, sem exageros, para não parecer tia de si mesma. 

Escolheu o vestido azul, combinando com os olhos, que escondia eventuais quilos ganhos em chocolates, mas ressaltava as formas tropicais. 

Hesitou entre várias essências, igualmente sugestivas, mas optou por uma leve, que perfumou o corpo, os cabelos, os pulsos, atrás das orelhas, um banho de prazer. 

Calçou os sapatos delicados, saltos bastante altos, deu uma última olhada para o espelho, antes de apanhar a bolsa.

Conferiu seu interior, apalpou a camisinha, procurou e encontrou o batom, retocou os lábios outra vez.. 

Contou o dinheiro, xingou o presidente e conformou-se, fechando a bolsa. 

Uma última olhada no espelho, de corpo inteiro. De frente, de costas, empinando a bunda, encolhendo a barriga, levantando os cabelos. Deveria prender? Desistiu.

Afofou os cachos com os dedos, mandou um beijo para sua imagem, fingiu que ignorava as rugas, mas esticou a pele para ver se sumiam. Não sumiram. 

Deu mais uma olhada, retocou ligeira imperfeição no batom com os dedos, apertou os lábios e, relutante, abandonou o espelho. 

No elevador, novamente conferiu o rosto, cabelos, maquiagem dos olhos, levantou os pêlos da sobrancelha.

Cumprimentou o porteiro. Um táxi vinha passando na hora em que saía do edifício.

Deu o endereço e se recostou deliciada nas almofadas macias do banco traseiro.

Pagou ao motorista, saltou, entrou.

No escurinho do cinema, chorou sobre as pipocas sabor bacon.


Nota - Este texto foi inspirado na imagem final desta bela poesia de Marcelo Ferrari:

O ÚLTIMO SUSPIRO

Meu avô era um moleque 
Pele enrugada pelo sol e serviços prestados 
Gostava de arroz com banana 
Exercitava a alma indo me buscar de bicicleta na escola 
Morrer, para ele, não era o fim, era rotina 
Certa vez, me levou ao cinema 
Nas cenas de drama, executava-se "o suspiro", de Franz Liszt 
Meu avô chorava sobre a pipoca

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