DO ALTO DA ESTANTE DE JACARANDÁ
Daisy Melo

Era um livro já amarelado. Tinha aquele cheiro antigo de traça e a capa dura estava carcomida nas pontas. Era todo velhice mas ainda digno em seu papel fino e enrugado.

Nele, desenhadas, umas figuras estranhas a bico de pena, que aos olhos de uma criança seriam aterradoras: o lobo mau horrendo esperando para dar o bote, a vovozinha coitada, tão frágil, tão magrinha, sendo devorada e a Chapeuzinho, uma criança ainda, o que poderia fazer? O livro era todo medo e horror. Mas possuía o lustre suave, a douração soberba. Era uma obra prima. E só ela sabia.

Por isso, o sentimento de luxúria misturado com uma certa volúpia - puro deleite - desenhado no rosto da menina quando manipulou o livro pela primeira vez. Sentimento impensável para alguém daquela idade. E ela quis aquele livro mais do que já quis qualquer outra coisa na vida. Mais do que aquela Barbie de patins. Mais ainda que a bota da Kelly Key. Se o guardasse, deduziu, seria dona do mundo. Todos a admirariam pois mais ninguém o tinha. E a vaidade penetrou no coração da menina com a força de uma avalanche. 

Em vão tentaram dissuadi-la:

- Olha esse livro lindo com figuras de ursinho!

- Esse aqui tem musiquinha, veja só!

- Já viu livro mais alegre que esse todo colorido?

Mas nada adiantou. A menina chorou, esperneou, fez beicinho, queria porque queria o livro velho e carcomido de traças. 

E os pais pasmados:

- O que tinha aquela menina?

- Vamos levá-la a uma psicóloga, urgente!

E diante de olhares desolados - tsc... tsc... aonde foi que eu errei? - a menina exultava, vaidosa, segurando com cuidado o livro desejado junto ao peito. 

Levou seu tesouro para casa com cuidados de cachorrinho novo. Acariciava o amarelado do papel várias vezes ao dia, catava cuidadosamente as traças, cheirava o odor antigo e o coração batia descompassado, um frio no estômago e um verdadeiro turbilhão revolvia seu corpo. Decorava linha a linha fervorosamente e cada palavra, cada ponto, cada vírgula, era um mundo novo, cheio de experiências e viagens estranhas - supremo poder porque ela podia tudo!

E o livro tomou seu mundo inteiro. E o mundo que cabia em suas páginas era enorme. E passou a viver por aquele livro. E escrevia, escrevia. Colocava e tirava letras, amontoava-as em frases, produzia sonhos. Sua vida passou a se resumir a palavras por causa daquele livro antigo. E depois dele vieram outros e outros pois ele havia grudado na respiração, deslocado sua vida, tornado o seu algoz. E hoje, a possui do alto da estante de jacarandá, tão antiga quanto ele. E pode tudo - o vaidoso.

07/09/03
para Maria Helena Bandeira

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