DA FICHA AO CARTÃO TELEFÔNICO
José Luís Nóbrega

Um som estridente adentrava seu ouvido, fazendo-o despertar bruscamente. Procurou o despertador para silenciar o nascer de mais um dia, mas para sua surpresa, viu que o som advinha do seu celular. Estranho! Um celular-despertador!

A luz matinal nascia pelas frestas de uma janela japonesa, com sotaque americano: Sasazaki Mult-flex.

Saiu da cama meio atordoado, dirigiu-se ao banheiro. Procurou pelo pincel e o creme de barbear. Encontrou apenas um aparelho “Mach3”, e um tubo denominado “Shaving cream”.

O mundo estava estranho. A “ficha parecia não cair!” Apertou o tal Shaving não sei das quantas, e uma espuma foi espalhada pelo rosto, fazendo o “Mach3” deslizar suavemente.

Saiu do banho, e como fazia todas as manhãs, procurou o terno e a camisa para passar. Não era de muita vaidade, mas andava sempre arrumado. Abriu o guarda-roupa e avistou ternos e camisas sem nenhuma ruguinha. Os ternos de linho, e camisas de algodão, dificílimos de passar, foram substituídos, como em um passe de mágica, por camisas de “tencel” e ternos de “microfibra”.

Sem que a “ficha tivesse caído”, colocou aquela roupa feita de materiais estranhos e nomes difíceis; foi para a garagem; ligou o carro e... o mesmo começou a falhar! Só poderia ser o carburador sujo.

Explicou o ocorrido ao mecânico, que aos risos, debochou: “Carburador?! Num carro desse?! Não caiu a ficha?! Isso é problema de injeção eletrônica, ou da gasolina batizada”.Mas que mundo estranho! Abolir o carburador! Injeção eletrônica?! 

Aparelhos ligados, e a constatação do doutor mecânico (doutor, pois os aparelhos usados por ele faziam inveja a qualquer centro cirúrgico avançado),o problema era mesmo a gasolina batizada (um caso de polícia, no país da impunidade).

Desfeito o problema com o carro, foi para o banco fazer um depósito. Coisa até então normal, mas naquele dia... Ao chegar no caixa, o bancário foi logo se manifestando: “Poxa, não caiu a ficha não, meu senhor?! Ficar numa fila dessa para fazer um depósito?! Era só o senhor ter passado pelo nosso “Cash”. Depósitos podem ser feitos no “banco 24 horas”. Tudo... ‘on line!” E ali, aquele cidadão embasbacado com o “admirável mundo novo”, ouvia tudo em silêncio, sem que “a ficha tivesse mesmo caído”. 

Chegou ao trabalho meio atordoado. Pediu para a secretária enviar relatórios aos fornecedores por carta, ou por “fax”. A secretária replicou espantada: “Pode deixar patrão, mandarei tudo por “e-mail”. “E-mail?! Aboliram também o “fax”, uma das maiores invenções dos anos oitenta!” – pensou ele.

Trabalhou o dia todo, atendeu vários telefonemas em um aparelho com o qual podia locomover-se pela sala. Descobrira que o telefone estava “sem fio”.

Voltou para casa depois de mais um dia de estressante trabalho, e como fazia toda noite, procurou as fitas k-7 prediletas do inesquecível Frank Sinatra. Não encontrou as tais fitas, e no lugar dessas, vários CDs enfeitavam a estante. 

Colocou aquele pequeno LP num aparelho intitulado “CD player”, que no visor digital indicava: “Inserir compact disc”. Inseriu ali aquele disquinho, e para sua surpresa o Frank continuava inesquecível, mas cantou as 13 faixas sem precisar mudar do lado A para o B. Nem assim, “a ficha caiu!”

Antes de deitar, procurou na geladeira a caixinha de leite, na qual estava escrito: “Enriquecido com Ômega 3”. Ômega 3?! Ou seria Omega? Seu avô dizia possuir um relógio Om(é)ga por mais de cinqüenta anos... Ômega! Omega! Quanta confusão para um só dia!!

Já com a cabeça no travesseiro, aquele turbilhão de palavras e expressões varriam sua mente: Shaving Cream, Sasazaki mult-flex, on line, Cash, e-mail, tencel, microfibra, compact disc, CD player Ômega 3... E assim, achou que aquilo tudo seria um mal passageiro, e que no próximo dia, “a ficha cairia”. Ledo engano! Sofreria por toda a eternidade naquele mundo estranho. “Fichas não mais caíam”. Cartões telefônicos eram processados....

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