VERDE COR DE CANA
Márcio Benjamin Costa Ribeiro

A capota amassada do velho Fiat Uno vermelho estava manchada de sangue. O corpo do menino, caído no chão. Morto. As marcas dos pneus sobre a pele branca. A perna , virada de uma forma impensável para os vivos.

-Você conseguiu, campeão! - berrava a mulher bêbada. 

Ele saiu do carro segurando-se na porta. Suas pernas tremiam. Era mentira. Só podia ser mentira. Ele não matou ninguém.

-Cala a boca. Cala a boca. - era tudo que conseguia repetir.

-Você matou o menino.

-De onde ele saiu?

-Não importa. 

-Pare com isso. Me ajude, vamos levar ele.

-Prá onde, seu idiota? Você não consegue ver que ele está morto? - seu choro arrebentou, impedindo a compreensão das últimas palavras. 

-Chama alguém.

-Quem? São duas da manhã - ela já gritava abertamente. Não tem ninguém aqui perto. Só a porcaria desta linha de trem. 

-Eu nem vi ele se aproximar. Surgiu do nada por cima do carro.

-Claro que não viu, você está bêbado. Você nunca prestou nem pra dirigir.

-Me ajuda a colocar dentro do carro.

-Eu não vou tocar nele.

-Você quer ser presa? Eu não estava sozinho.

-Miserável.

-Pegue os pés. Vamos deixá-lo no canavial. 

-Meu Deus, ele deve morar aqui perto. Deve ter família...

-Você acha que eu estou gostando disso? - ele a segurou pelo braço com força. Pois digo a você uma coisa: não estou! Agora me ajude a levá-lo para a plantação.Pegue os pés.

Os dois suspenderam o garoto. Mas estranharam. 

Ele pesava como três homens fortes.

-Eu não posso com ele.

-Claro que pode. 

Levantaram com muito esforço e foram até o canavial. A lua iluminava toda a estrada. Deitaram o corpo perto dos pés de cana. 

-Pronto. Vamos embora. E olha só: não aconteceu nada hoje. Esqueça esta história. Vai ser melhor pra nós dois. Ninguém viu nada.

-Nós sabemos o que aconteceu.

-Acho que posso viver com isso. Contanto que eu esteja solto. Vamos embora.

Saíram do canavial apressados. Ela parou de repente.

-Você ouviu?

-O quê?

-Eu não sei. Um barulho no mato.

-É o vento. Deixa disso. É a última coisa de que a gente precisa agora.

Um vulto correu em sua frente. Depois outro ao lado. E outros. Correndo e rindo.Crianças.

-Quem são estas...? Quem...vamos embora daqui, vamos embora daqui, pelo amor de Deus.

A menorzinha surgiu de repente. Parecia flutuar de leve sobre o solo de massapé. Trazia um caderno na mão e uma boa dose de sangue escorria pela sua cabeça, de onde tinha sido arrancado parte do couro cabeludo.

-Você pode me ajudar, moça? Me ajudar a atravessar a linha do trem? Minha mãe não gosta que eu chegue em casa muito tarde.

A mulher gritou e correu, saindo do canavial. O apito do trem cortou o silêncio da noite. O sinal passou de verde para vermelho e baixou-se o bloqueio. Ela atravessou desesperada e não houve tempo de parar. O trem a atingiu com força.

O homem surgiu de dentro da plantação de cana e tentou entrar no carro. Apesar da tremedeira, a porta se abriu e ele sentou-se no banco. Instintivamente ajustou o retrovisor. Havia dois olhos de criança refletidos do banco de trás. Olhos de menino. 

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