A OUTRA METAMORFOSE
Carlos Alberto Francovig Filho

Consultas médicas fazem parte da rotina diária das pessoas. Minha consulta estava marcada para logo às 9 da manhã daquele preguiçoso sábado de primavera. Levava comigo, como sempre, um livro qualquer para esperar minha vez, já que médico atende sempre depois da hora marcada.

Aguardava na sala de espera junto com outros pacientes. Antes de iniciar minha leitura, pensava sobre a encomenda de temas para um escritor: “Assuntos encomendados deixam um escritor atormentado. Louco. Algumas vezes impotente. Parece, sem sombra de dúvidas, que o desafio de um tema entregue a um escritor para desenvoltura do que mais sabe fazer, escrever, como ato de ação que é, torna-se uma barreira imensa. São os limites do ofício, iguais aos limites da vida. A vida é limitada. A eternidade é apenas uma imagem invisível; aos sensitivos, um espectro de luz.”

Vivo há algum tempo no limite de minha geografia física. Movimentos também impotentes, desfavoráveis ao que a mente exige de um esforço mecânico longe de acontecer.”

Estas coisas decorrem da transformação. Mudança. Metamorfose mesmo.

Foi assim que passei a pensar sobre isto: metamorfose.

A primeira invasão sentida foi a lembrança antiga de Gregor Samsa. Qual bizarra metamorfose capaz de acometer as poucas noites insanas de Franz Kafka? O verdadeiro Escritor, alucinado com a insólita criação, deixou clara a transformação externa, escondendo-se tal qual exércitos de resistências em redutos estranhos das ruínas humanas.

Ruínas. 

A secretária me anuncia. Entro na sala de consulta.

O espaço físico do corpo humano limitado e propenso às falhas. Máquinas sempre falham. A minha falhava, não sabia exatamente onde, afinal, não sou mecânico e nem médico. Mas sabia da falha. E o médico, Dr. Noriaki, filho único de um casal originário do Japão, meu amigo de infância, na consulta relembrava os tempos antigos dos jogos de bola na rua onde fazíamos as marcações de traves dos gols com tijolos de construção. A construção. Rememorava os passeios de bicicletas, as pipas livres na liberdade do céu azul, os banhos de chuva. Gostávamos de caminhar no asfalto, Noriaki, eu e vários outros amigos, chutando as poças d’água. imagens de cristais. Os pingos da chuva formavam rapidamente coroas de reis sem reinos. Muitas delas, quase uma legião de coroas na rua de asfalto e corríamos e chutávamos as coroas, depúnhamos os reis. Ria, ria e ria, entre lembranças e perguntas médicas. Enquanto ria balançava os ombros enterrando a cabeça entre eles.

- Seu aspecto externo, amigo, aparenta uma saúde boa. – Noriaki agora sério, médico, distante dos velhos tempos de brincadeira, digitava em seu computador os dados do exame que ia fazendo. Eu não via as teclas atacadas por seus dedos. Não via a tela do computador. Assegurava-me confiante em suas palavras de profissional.

O consultório de Noriaki tem ar oriental. Vasos, incensos, uma coleção com cerca de 15 bonsais atrás de sua mesa compondo um pequeno jardim de inverno que recebe luz solar de forma indireta pelo teto de vidro. Música ambiente pelas notas calmas e tranqüilas de Kitaro. Alguns quadros pendurados pelas grandes paredes com motivos orientais. Sobre sua mesa, entre anuais de medicina, lupa, retratos de sua família sob os pés do Monte Fuji. Noriaki, com ar de imperador da terra do Sol, levanta-se de sua cadeira e me diz para ir à extensão da sala dividida por um biombo feito de bambu e vidro opaco. Ali a paisagem decorativa é outra. Apenas utensílios de exames médicos. O som de Kitaro neutraliza a frieza dos aparelhos.

- Tire os sapatos, a camisa, desabotoe a calça e deite aqui meu amigo. – O Dr. Noriaki ordena ao paciente, antigo amigo de infância. Antes de atender suas ordens, deixo sobre o balcão de apoio ao lado da cama de exames, o livro que trazia comigo. Tenho o hábito de sempre ter à mão um livro qualquer para preencher o vácuo vazio dos tempos de toda espera. Fui me desfazendo de parte das vestimentas, camisa, calçado e meias, além do livro que já disse, chaves, celular, carteira e caneta. A camisa pendurada. Os 2 pés do sapato ao lado um do outro, com as meias dentro de cada um deles. Os demais objetos sobre o balcão de apoio. Deitei. Meus olhos encaravam a enorme lâmpada redonda sobre a cama. Dr. Noriaki de costas para mim se aprontava. Máscara, luvas, aparelho de medir pressão e estetoscópio em volta do pescoço como se fosse um colar. Ele se virou e eu via apenas seus olhos. Eu sorri e acredito que ele também. Prosseguiu com os exames clínicos, agora diferentes do início da consulta. Começou batendo em minha barriga, meu peito, puxando a pele abaixo dos olhos, nariz, boca, ouvido, apertos no abdômen:

- Inspire fundo. Isto. Agora segure a respiração. – Ordenou-me o Dr. Noriaki enquanto passeava com o estetoscópio sobre meu corpo, buscando os sons escondidos.

O ar preso no pulmão com meus pensamentos de perguntas: “Pra onde será que foi o ar que acabei de segurar? O que ele ouve com esse aparelhinho gelado? Serão os ventos que sopram dentro de mim? Soprarei ventos leves, felizes, alegres, ou são todos furiosos como tem sido a minha jornada de sentimento?

- Pronto. Pode soltar. – Ordenou-me novamente o Dr. Noriaki.

Soltei o ar. Sai de minha boca um vento sem forças de desmoronamento do consultório. Tudo igual. Dr. Noriaki dá a volta na mesa de exames e enquanto rodopia na mesa seu pescoço vai girando sobre o tronco de origem nipônica. O corpo fica à minha frente e a cabeça apontando o balcão onde deixei minhas coisas. Depois ele se volta e diz:

- Humm... Você ainda mantém seu gosto por literatura? Me lembro quando você brigou na escola quando te chamaram de viadinho porque estava lendo um livro de poesias do Carlos Drummond de Andrade. Mas eu sempre admirei esse seu gosto por literatura. E este livro que trouxe aí? Vire de lado. Isto. – O amigo Noriaki havia invadido minha leitura. O livro que trouxe na espera do atendimento. Obedeci a ordem do Dr. Noriaki e me virei.

- Sim. Sempre gostei de literatura. Gosto de ler e aprender pelas coisas que leio. É um complemento de aprendizado. Às vezes penso que seja um ócio gostoso de cultivar, a leitura. Boa leitura. Também me lembro e rio muito quando briguei na escola quando me chamaram de viadinho, mas a revolta maior não foi pela qualidade que quiseram me dar, mas sim pela mediocridade. Depois me achei tão medíocre e bruto quanto aquele. – Parei de falar ao toque de recolher para a respiração. Ouvia as risadas, pequenas, do amigo Noriaki observando:

- Já vi gente brigar e muito por time de futebol, namorada, dinheiro, agora por poesia nunca tinha visto. Você realmente é estranho, mas gosto muito de você e sempre gostava de ouvir as histórias que você lia e resumia pra todos nós, andando na chuva, passeando de bicicleta, depois de nossos jogos, sim, senhor, aquilo é que era bom. Mas me conte agora, o que é isto que está lendo? – O velho e antigo desejo de Noriaki, sempre saber o que eu lia, os resumos de obras para as provas de literatura, ou a abertura das imaginações de tantas histórias já escritas na face da Terra.

- Metamorfose, de Kafka. – Respondi com a liberação dos meus ventos interiores. Os furações, os tornados que deviam revolver os meus recônditos internos e depois acalmar meu coração furioso tal qual um veleiro no fim do dia em navegação sublime sob a flor d’água dourada pelo reflexo final do sol desaparecendo.

- Sei, Kafka. Pronto. Meu resumo a você: sua saúde, pelo exame clínico, está muito boa. Está um pouco acima do peso. Um regime para reduzir suas gorduras e vamos fazer uns exames laboratoriais. Sangue e urina, nada de mais. Vamos saber como estão suas taxas. Glicose, ácido úrico, triglicérides, colesterol, enfim... Esta é a sua metamorfose, amigo, o tempo tomando conta de seu corpo. As alterações das taxas podem ser fatais e então a transformação, a metamorfose da vida para a eternidade. É disto que falava o seu Kafka?

Senti um ar de provocação em sua pergunta, como sempre me provocava para me ver contando e depois invadindo as histórias contadas, mesmo aquelas que ele e outros amigos também liam.

Enquanto me compunha voltando as vestes para o corpo, ria longamente por dentro de mim, onde antes segurei os invisíveis ventos. Lembrava da Metamorfose de Kafka. De seu personagem Gregor Samsa. Do empregador de Gregor. Do desespero da mãe e da irmã de Gregor, da fúria do pai de Gregor atirando-lhe maçãs. Da maçã que ficou apodrecendo sobre suas costas. Da faxineira limpando as sujeiras do apartamento da família Samsa. Da previsível morte de Gregor, porque outra alternativa não lhe restava, a não ser os restos de comida e os restos de sua vida e a morte. A expulsão repulsiva comandada pelo Sr. Samsa dos inquilinos de seu apartamento, na defesa dos sentimentos de Gregor. Tudo como se fosse uma enorme tempestade. Uma fúria de ventania, maior que aquelas silenciosas tormentas dos furacões que eu tinha acabado de segurar nos pulmões por ordem do Dr. Noriaki. Por fim, Gregor Samsa, não voltou a se metamorfosear, morreu magro, esquelético, naquela bizarra imagem inicial de transformação de bicho nojento. Mas o Sr. Samsa, o pai, a mãe e a irmã Grete felizes como a imagem do veleiro deslizando em águas espelhadas de calmaria no fim de tarde repousaram silenciosa esperança de felicidade no casamento da filha que a novela de Kafka não tratou. Apenas os sonhos dos pais e irmã de Gregor deixando de ser preguiçosos.

- Não, Noriaki. Meu Kafka falava de maçãs rodando eletrizantes pelo chão. Meu Kafka falava de uma guerra interior sem vencedores e vencidos. Falava de metamorfose, de uma metafísica esquisita. De esperança a cargo do leitor para dar à Grete uma vida melhor que teve no curso da bisonha novela. 

- E que fim você deu a Grete? – Agora a provocação revelou-se. A única curiosidade do amigo Noriaki. Me lembro que dei a ele, em um aniversário, quando cursávamos faculdade, ele medicina e eu letras, há uns 20 anos atrás quando o País era invadido pela comoção das Diretas Já e o Tancredo Neves ainda era vivo, o romance inacabado de Kafka, O Processo. Nunca soube ao certo se ele leu ou não. Às vezes parecia que sim e outras que não. Conclui que sua leitura foi superficial, aos pedaços, sem finalização como a própria história de Josef K. Nesse momento pendi mais pela certeza, porque ao mencionar a aberração de Gregor Samsa meu amigo Noriaki não se lembrou do presente recebido, embora ainda continuasse com dúvida. Mas falemos do fim dado a Grete. A outra metamorfose.

- Grete – iniciei enquanto voltávamos à sua decorativa sala de consulta médica, o Japão de Noriaki estava absorto naquele pequeno pedaço, como o próprio país do Sol Nascente. Tomamos os mesmos acentos do começo da consulta médica e enquanto ele digitava as ordens dos exames laboratoriais ouvia atento. – primeiro triste por Gregor, seu irmão, depois feliz, também por Gregor, desenhou entre os sonhos, seu e de seus pais, os gestos com os braços, espreguiçando-se, e aceitando, como sempre quis, a vontade de casar. Mas sabia ela, Noriaki, desde quando Gregor era apenas um caixeiro viajante e antes da falência de seu pai, possuir um enorme desejo feminino, o de casar, mudar de vida. De se transformar. De ver no curso de seu tempo uma metamorfose esplêndida. Diferente do esquisito bicho peçonhento que virou seu amado irmão. Ouviu dizer do Brasil. Da Boêmia onde estava, na fila da compra das batatas que seriam servidas no jantar de uma daquelas terríveis noites de metamorfose de seu irmão, viriam sobre a mesa de madeira, ao redor de seus pais e os inquilinos do apartamento, dentro de uma travessa funda, todas redondas e amarelas, soltando fumaça, ouviu dizer das 2 senhoras à sua frente que o Brasil, país de índios e canibais, possuía lugares exuberantes e exóticos. Selvas submersas em seu interior geográfico, o Amazonas. Uma tal pororoca, o fenômeno de encontro das correntes de maré com as correntes dos rios da bacia amazônica. As 2 senhoras, Noriaki, passaram a falar da selva amazônica, do poder alucinógeno de um chá de planta que não sabiam o nome certo capaz de transformar solitárias solteironas em verdadeiras amazonas. Naquela noite, Grete voltou para casa por igual caminho que sempre fez, trazendo consigo o saco de batatas e alguma coisa mais dentro de si. Metamorfose, Noriaki, começa assim mesmo com alguma coisa tão minúscula na vida da gente e totalmente diferente e inusitado. Uma fissura que rompe nosso dique interior trazendo atrás de si a força caudalosa e sem controle das águas que movimentam nossas vidas. Grete não disse nada em momento algum, esqueceu-se da enfermidade de seu querido irmão e foi deitar. A fissura de seu dique ficou ali, com ela tentando segurar a força caudalosa. Somente após a morte do irmão, quando os pais reavivaram o sonho de casar, deixou subir à tona do oceano de sua vida o Amazonas com igual estrondo da pororoca. O dique era de vez rompido. Contou aos pais sobre o Brasil, sobre o Amazonas, sobre o chá. Primeiro mudaram de apartamento como se apagasse um passado melancólico e horroroso. Depois se uniram ao sonho até que mandaram para cá, a filha, a Grete. Os pais prefeririam ver a filha longe dos olhos a ter que dar aos olhos igual sofrimento que tiveram com o Gregor, e a mudança, certamente, não haveria de transformá-la em bicho peçonhento. De sua chegada em terras brasileiras, não perdeu tempo e se mandou de imediato para o Amazonas. Nas andanças pela selva amazônica encontrou-se com uma tribo indígena. Após alguns meses, mesmo pela dificuldade de línguas, conheceu o tal chá de resultados milagrosos. Dizem que tomou do chá e dançou uma dança louca, erótica, chamando atenção do filho mais velho do cacique daquela tribo. Dizem que ela se metamorfoseou em índia e casou com o filho do cacique e tiveram muitos filhos juntos. Quanto aos pais, bom quanto a eles, morreram na Boêmia e lá foram enterrados.

Noriaki sorriu. Estendeu-me o braço e disse:

- Você não tem jeito mesmo, meu amigo. Se Kafka ouvisse isto choraria de tristeza e terminaria logo a história de Josef K. Você sempre achou que eu não li aquele livro todo, não é verdade?. Li e li 3 vezes. Bom, aqui está a relação dos exames laboratoriais. Os resultados virão para o consultório. Te espero no retorno, mas sem a Grete. Traga algo genuíno e original. – Levantou-se, apertamos as mãos. Um abraço de amigos antigos e seguimos, sem medo e sem metamorfoses, nossos separados caminhos.

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