O GRANDE BARATO
Erazê Martinho

Kennedy Salustiano Silva carregava duas preocupações, fosse onde fosse - e mesmo antes de ir a qualquer parte: já o primeiro olhar matinal, no espelho do banheiro, registrava o cenho franzido, com duas rugas na testa.

A primeira apreensão era referente a seu prenome. Não que tivesse alguma coisa contra o malsinado presidente norte-americano. Ao contrário. Com apenas sete anos de vida, desejando saber mais a respeito do estadista que inspirara seus pais na pia batismal, leu, de cabo a rabo, cada biografia ou informação a respeito de John Fitzgerald Kennedy. Sua admiração pela trágica personagem só não era absoluta porque o trauma causado pelo assassinato de JFK dominara, de tal modo, o noticiário mundial, que outro falecimento ocorrido no mesmo dia, o de Aldous Huxley, escritor favorito de Kennedy Salustiano, virou nota de rodapé. Esse fato deixava, no espírito do jovem intelectual idealista, uma ponta de tristeza por traduzir a supremacia da política sobre a cultura, a importância do efêmero sobre o perene – em que pesassem a surpreendente crueldade praticada contra o chefe da mais poderosa nação do mundo e o esperado desfecho do mal que minava a saúde do idoso escritor inglês há anos.

O incômodo provocado por chamar-se Kennedy era devido, em primeiro lugar, por ser um sobrenome transformado em prenome. Além disso, era um nome de origem estrangeira. Kennedy Salustiano orgulhava-se de sua nacionalidade, tanto quanto de ser nordestino. E não gostava exatamente desse costume, comum em seu estado natal, de se colocarem sobrenomes famosos como prenomes de filhos. Seus dois irmãos mais novos chamavam-se Gutenberg e Marconi.

A segunda objeção ao Kennedy de seu nome nascera anos mais tarde, quando decidiu estudar Bioquímica e assinou seu primeiro trabalho apenas com a letra K. Ao notar o detalhe da assinatura, um colega de classe, com a gaiatice própria dos estudantes, começou a chamá-lo de Kafka. Daí pra o apelido de Barata foi questão de dias.

K. aceitou a brincadeira com esportividade e continuou assinando seus trabalhos, provas e documentos apenas com a inicial do famoso prenome e tal como ficou conhecido o narrador da ficção kafkiana. Tinha moral pra isso, era um dos melhores alunos do curso. Ainda assim, carregava, em algum canto de seu espírito, um mau pressentimento a respeito das analogias – tanto em relação ao notável presidente assassinado, como ao fantástico escritor estigmatizado.

Um dia, envolvido por um trabalho prático, K. pediu autorização ao professor da cadeira de Genoma pra continuar trabalhando depois da aula. Sua pesquisa prometia resultados inéditos no campo da revolucionária ciência. Foi então aberta exceção para que o estudante gozasse da prerrogativa exclusiva dos pesquisadores da casa. Com uma diferença: era sexta-feira e nem mesmo o mais aplicado dos cientistas permanecia na escola em fins-de-semana.

K. tinha uma nova hipótese de avaliação dos casos de surdez hereditária, segundo a qual seriam 20% e não apenas 3% os casos em que a surdez mais comum “provém da mutação 35delG no gene da Conexina 26 (GJB2) por meio de PCR alelo-específica e mutação A1555G no gene do RNA ribossômico 12S, por meio da PCR seguida da digestão com enzima de restrição”. 

A dedicação de K. ao estudo desse mal tinha uma razão antiqüíssima – se assim se pode chamar a obstinação surgida na infância do estudante, agora com 23 anos de idade. Sua mãe era surda e sofria muito com isso. A doença, conforme crendice do lugarejo onde a família vivia, deveu-se a um golpe de ar, ocorrido durante o primeiro parto, exatamente quando nasceu o talentoso estudante. Antes disso, a figura da mãe de K. era “o maior barato”, segundo as conversas familiares, comprovadas por fotos que cobriam parte das paredes da sala da casa e nas quais a triste Georgina de hoje se revelava uma mulher muito bonita, à frente de um trio de músicos com sanfona, zabumba e triângulo. A mãe de K. fora a cantora de música regional mais requisitada na cidade e nos arredores.

Enquanto os olhos de K. conferiam, pelo microscópio, o movimento agitado de micro-organismos, essas imagens da mãe cantora desfilavam por sua memória, o que dava à tarefa um fervor incomum aos frios estudos científicos.

E foi numa dessas fusões de imagens que K. começou a ouvir ruídos, inicialmente baixos, que foram crescendo, crescendo, até invadirem o laboratório. Enlouquecido pelo baticum, que agora soava a baião, K. derrubou um dos frascos onde estavam as moléculas, objeto do seu estudo. E ali mesmo, no chão do laboratório, seus olhos espantados viram os micro-organismos crescerem, crescerem, até se tornarem clones de Georgina - todas alegremente cantando e dançando o baião.

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