GRETE
Iosif Landau

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, GregórioSamsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia... também despertei depois de um sono intranqüilo, mas os insetos estavam na minha boca, na minha cabeça dolorida, no meu estômago, engoli um Antak, isso vai matar os bichos no duodeno, aspirina pros da cabeça, pra boca a fumaça de um cigarro, levantei-me, não consegui evitar um gemido, com os pés arrastando até a cozinha, abri a geladeira, engoli o suco de laranja, estava passado, xinguei a empregada, bebi um gole de café frio tirado da garrafa térmica, xinguei de novo, acendi outro cigarro, péssimo hábito prum velho, fui até o computador, movimentei o mouse, entrei na page do JB, Benedita e os evangélicos portenhos, só rindo! a bosta de sempre, entrei no word, minha tarefa diária de escrever, pode-se escrever sem se tomar por um outro? substituir a história das fontes pela das figuras, a origem da obra não é a primeira influência, é a primeira postura, copia-se um desempenho e depois por metonímia, uma arte, onde lera isso? Barthes? produzir e reproduzir do que eu gostaria de ser, com certeza! meu personagem, um lobo, um bobo? solitário, não tem amigos, mulheres sim, aves de rapina, sexo e dinheiro, amor inexistente, violento como coração de mãe, o gum shoe de Chandler, Hammet, eu sou assim? não! me apaixono, sofro, um brinquedo na mão delas, um babacão, ao escrever invento uma trama, espero encontrar meu objeto sexual, crio imagens particulares, de ficção, objetos e não raciocínios, Mallarmé falava de gestos da idéia, acha-se primeiro o gesto e em seguida a idéia, expressão do corpo, a idéia depois, escrever para mim era sonhar, uma espécie de paquera íntima, seduzir a cumplicidade do leitor o grande desafio, comecei a teclar... andavam devagar, quase parando, o homem de vez em quando cochichava no ouvido da mulher... 

Ao meio dia parei, o maço de cigarros, meu combustível, jazia vazio ao lado do cinzeiro.

Resolvi sair.

Na esquina com Jangadeiros, parei no Bom Jus, pedi um sanduba natural e um suco de goiaba, comi com prazer, paguei, desci a Pirajá, parei num pé sujo, comprei um maço de Hollywood, um dedo de café pra tirar o gosto da comida, acendi um cigarro e continuei a caminhar, atravessei, depois da Vinícius entrei na Letras e Expressões, fui direto ao stand das revistas sobre música, retirei uma revista de jazz italiana, o disco de Carmen McRae anexo, comprei o livro de Flávio Moreira da Costa, O Equilibrista do Arame Farpado, subi para o segundo andar, sentei numa mesinha e pedi um expresso, curti o ar condicionado, em paz com a vida.

– Posso me sentar?

Levantei os olhos, bela morena, trinta e poucos anos, indiquei a cadeira com um aceno de cabeça, sentou-se. 

– Vem sempre aqui? 

Respondi que, às vezes, –  eu venho quando posso –, continuou ela, – é o maior barato –, eu fiz sim com a cabeça, – o que faz? –, dei de ombros, – sou roteirista da Globo –, continuou ela, – interessante –, respondi sem entusiasmo, pedi outro expresso para ela, ofereci um cigarro, ela recusou, dei tratos à bola, como passo uma cantada nela? desisti, cadê inspiração? ela continuou a tagarelar, eu me limitei a gestos com a cabeça,... – pagam mal mas o que posso fazer? é pra sustentar os estudos, mestrado em filosofia, o que acha de Deleauze, Foucault? não resisti, – uns chatos –, respondi, ela não pareceu se incomodar, eu muito menos, de repente levantou-se e partiu. Desci, paguei a revista, o livro, saí.

– Tava te esperando – falou ela.

Caminhamos em silêncio. Na Praça Gal. Osório ela parou.

– Matei meu marido!

Limitei-me a olhar seu lindo rosto.

– Doze facadas!

Doze? pensei, por que doze e não apenas três?

– Doze?– perguntei – como sabe?

– A polícia contou.

– Foi condenada?

– Quatro anos! Saí faz uma semana.

Ela pegou o caminho do portão da vila, eu a segui, parou em frente a uma das casas.

– Ele acordava de manhã e dizia sonho com o bar, vejo as garrafas enfileiradas, lambia os lábios, três anos sem beber e ainda sinto vontade, isso todos os dias, um inferno, desejava que bebesse, voltasse a ser um bêbado, mas não, todos os dias a mesma ladainha, aí um dia peguei a faca e... não diz nada? achava que um homem da tua idade tava cheio de sabedoria... não me parece que encontrou paz.

– Cara Jackie a Estripadora, não quero paz e me lixo pra sabedoria, eu quero compensação pela porra do sofrimento e desilusão!

Destrancou a porta, entramos, deitou-se na cama, estendeu os braços...

– Que pressa? sou velho, ou não reparou?

Sentou-se.

– Preciso namorar primeiro. Pegar na mãozinha. É o que quase me bastaria – falei.

– ....

– Dar um beijinho. Aqui!

–...

– Tá cheirosa!

– É francês.

– Hmm, que mãozinha linda. E o biquinho do teu belo seio, como é?

– Igual ao das outras.

– Aí é que você se engana. É diferente. Um tem o bico mais escuro. Outro durinho e rosado . O teu deve ser assim.

– ...

– Algumas tem o seio raso, uma taça de champanhe, outras como um bojudo copo de conhaque para aquecer na palma da mão.

Ela desandou a rir, eu acompanhei.

Levantou-se, espalhou os livros perto da cama, apanhou um, o jogou na minha direção. Não o segurei.

– Aposto que é o Dalton Trevisan – falei – o conto?

– Essa é fácil. Orgias do Minotauro.. 

– Deita! – falei – com esse dedinho vou acordar teu vulcão. No meio das pernas um botão chamado cli-tó-ris. Vou me perder no teu abismo de grandes lábios de rosa!

Ela gargalhou.

– Que tal uma bebida?

Aceitei.

– Você mentiu – falei.

– Como sabe?

– Pra quem saiu da cadeia essa semana. o cafofo tá bem vivido, vejo até o computador. E os livros!

Sorriu.

– Tenho um roteiro na cabeça. Gosto de vivenciar pra poder escrever. Pesquisa de campo. Sabe como é, né? O computador tem memória mas não tem lembranças. Preciso criar lembranças. 

Olhei pra ela, as mulheres são loucas mas as adoro, si supieras, que aún dientro de mi alma, conservo aquel cariño que tuve por ti... quem sabe si supieras que nunca te he olvidado, volviendo a tu passado te acordarás de mi..,

– La Cumparsita?

– Sim!

– Vem! – estendeu os braços.

Olhei, dei uma risada debochada.

– O matuto só fala em burro, o carroceiro só em boi... o velho só no que já foi! Menina, eu já fui!

Sorriu, continuou com os braços estendidos.

– Vem!

Fui.

Olhei pra ela como se a tivesse visto pela primeira vez; Curioso, pensei, fodi ela e não a vi, rosto infantil, pequeno nariz, olhos pretos, cabelos cortados rente podiam indicar uma adolescente, mas corpo era opulento, sensual, belos seios, bunda redonda, impertinente, mulheraça! e a cabeça, como será?

– Diz que escreve. Só roteiros? 

– Tenho um sonho. Escrever sobre o Rio.

– Um João do Rio feminino?

Não respondeu de imediato.

– Talvez. Fisgar momentos fugazes das relações entre as camadas sociais, caricaturar os endinheirados, os emergentes...

– A correspondência de uma estação de cura? A profissão de Jaques Pedreira?

– Sim, sim, a sociedade de pingentes, o universo de miséria, o contraste com as mentiras confortáveis da Zona Sul, diário e ficção, as surpresas do cotidiano, a fotografia, a exposição, o dolorido... incesto, adultério, prostituição, morte, machismo, canalhice, morbidez...

– Isso é o Nelson Rodrigues – falei – ou João Antônio, só homem pode escrever assim. 

Nos olhos dela uma interrogação.

– Só homem consegue emporcalhar-se, ir fundo na sujeira, escrever sobre ela e não a tornar vil.

Ela não respondeu.

– Não esquenta! O carioca acorda, levanta, vai à padaria e compra o pão e o leite e depois vai trabalhar, ainda tem muita liberdade por aqui, a casa tá caindo, o país tá caindo, você coloca um raminho de arruda na orelha, bate três vezes na madeira e sai. O lúdico é bem melhor. 

Ela sorriu.

Olhei o corpo sensual ainda despido à minha frente, o tesão anulado pelo carinho, segurei a cabeça de gamine, os olhos negros sonhadores, beijei o rosto, ela acariciou minha mão, que coisa extraordinária as mulheres!

– Bom, desejo que realize o sonho – falei sincero.

Ela levantou-se.

– Quando vamos nos ver de novo?

– Não me disse seu nome – falei distraído.

– Grete!

...revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente... pulei da cama, droga de sonho mais louco...

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