JOÃO DAS FLORES
Luisa Jardim

“Era só isso que nos faltava”, foi a reclamação de Julieta quando o pai comunicou que resolvera aceitar o emprego que lhe fora oferecido pelo Prefeito.

Tendo vivido os primeiros treze anos de sua vida no sítio que o pai herdara do avô, Julieta e os irmãos – Jussara, Juvenal, Juvêncio e Joviano – amargavam, há um ano, a vida na cidade. Amargavam porque o pai, vendido o sítio por quase nada para ficar livre de uma arenga com um vizinho, comprou uma casinha no fim da rua principal de Americanópolis (pequena cidade do interior de Goiás) e para lá se mudou com a família. A casa onde moravam agora tinha somente um quintal pequeno (onde ele plantava algumas verduras, legumes e a mulher cultivava dois pés de dálias, pois precisava de flores para o altar da santinha que protegia a casa.

Passado um ano, não conseguira arranjar emprego. Ele, que sempre trabalhou na terra, vivia amargurado, pois estavam comendo o dinheiro que restara da venda do sítio e este já estava no fim. Sua mulher, além do serviço da casa, arrumara um lugar de passadeira na casa do Prefeito, mas o ganho era pouco. 

Naquele dia, “seu” João tinha saído cedo, mais uma vez atrás de serviço – ele ganhava uns trocados com os bicos que fazia (limpava um jardim, capinava uma horta, ajudava um pedreiro seu conhecido, quando este tinha serviço) e assim a família ia vivendo. 

Só que o pouco dinheiro que entrava ia todo para a comida da família: ele, a mulher Leocídia e os filhos Julieta, de 14 anos, Juvenal de 13, Jussara de 10, Juvêncio de 9 e Joviano, o caçulinha, de 7 anos. Há mais de um ano os meninos não ganhavam uma roupa ou um sapato novo, o que lhes valera, na escola onde todos estudavam, um apelido: “os caipiras”. 

Quando chegou à noite e comunicou à família que resolvera aceitar o emprego oferecido pelo prefeito, as meninas choraram e os garotos ficaram pelos cantos sem falar nada (que homem não chora). Só Leocídia, que compreendia o quando lhe era difícil aceitar tal serviço ficou ao lado do marido, animando-o. Repreendeu os filhos com brandura, pois também compreendia o lado deles: “que é isso, minha filha? Todo trabalho é digno”.

“Mas, mãe, nós já somos conhecidos como ‘os caipiras’ na lá escola, agora vamos ser ‘os filhos do coveiro’. Pode haver coisa pior do que ser chamada de Julieta do Coveiro?”

Pode sim, retrucara João, pondo um fim à discussão, pior que ser filho de coveiro é não ter o que comer, não ter o que vestir, não ter dinheiro nem para os cadernos da escola.

Na segunda-feira seguinte, João levantou cedo, vestiu sua melhor roupa e foi para o trabalho. Ao receber das mãos do encarregado da Prefeitura o material para o trabalho, na porta do cemitério, quase desistiu e voltou para casa, mas, era um homem obstinado e decidiu fazer o que pudesse. O lugar era um abandono só. Naquela terra, o cemitério era evitado pela maioria dos habitantes. O portãozinho de madeira quebrado, quase caindo, muros cheios de buracos, os túmulos sem o menor cuidado, com o mato crescendo livre entre eles. João ficou chocado. 

Botou mãos à obra e começou a faxina. Limpou o mato, capinou, consertou o portão e iniciou uma visita aos donos dos túmulos, de quem conseguiu cal, tijolos e tinta. Passou então a recuperar o muro e os túmulos. Depois de tudo bem limpo, começou a plantar flores. Plantou rosas, girassóis, margaridas, dálias, semprevivas. Como fazia com suas plantas no sítio, conversava com elas e vigiava cada brotinho novo.

No dia de finados, o antigo cemitério estava que era uma beleza e as famílias passaram a ter prazer em visitar os seus mortos e passear pelas aléias floridas. Quando morria alguém, “seu” João colhia uma braçada de flores e levava para a família, o que o lhe valeu o apelido de João das Flores (no interior de Goiás, todo mundo tem apelido). 

Um dia aconteceu um fato interessante. O Prefeito ia receber, para almoçar em sua casa, um influente político da capital e a esposa dele, meio sem jeito, chamou Leocídia e perguntou se ela não podia arranjar umas flores para enfeitar a mesa do almoço. Espantada, a passadeira lhe explicou que as únicas flores que possuíam eram as do cemitério (mas ... flores de cemitério para o almoço?). Ora, não precisamos dizer de onde vieram, retrucou a “prefeita”. E assim foi, a mesa estava lindamente enfeitada com rosas e dálias ... do cemitério.

Uma semana depois, “seu” João foi chamado à Prefeitura e o encarregado lhe comunicou que ele seria transferido para trabalhar no jardim da Praça Principal. O pedido fora feito pelo padre Zeca e pelo presidente do Rotary, de modo que o Prefeito resolveu atender.

João das Flores coçou a cabeça, pensou e fez uma contra-proposta: "Olha, seu prefeito, eu posso até trabalhar lá no jardim, mas não vou deixar meus amigos aqui sozinhos, eu fico com os dois serviços e minha mulher me ajuda. Com o aumentinho que vou ter, posso dar mais um conforto pros meus criolinhos".

Essa história eu ouvi lá no interior de Goiás e quem contou, me assegurou que a Julieta é a mais orgulhosa do apelido do pai.

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