MEMÓRIA DO TEMPO
Daisy Melo

Ela nasceu num dia certo de outubro há muitos anos atrás. Mas não gosta de comemorar aniversários. Não haverá velinhas iluminando o bolo, muito menos bolas coloridas.
A mulher apenas espera olhando mansamente da sacada, a lua rubra que bóia num mar despojado de estrelas. 

Ela aguarda pelo Tempo que ficou de passar. 

Sempre pensara nele como um velhinho de barbas amareladas, chinelos de couro e camisolão branco arrastando-se pelas brumas com seu cajado. Mas hoje ela sabe - sem saber que sabe - que o Tempo é um jovem quase adolescente, que traz um sorriso constante e irônico nos lábios. E brinca com ela. 

A lua agora quase se afoga no mar escuro. E da sua sacada, ela pressente que o Tempo, quando passa pelo seu bairro, vira à direita, sobe a ladeira e detém-se um instante acariciando as rosas que se desmancham por sobre o muro do vizinho. Sente quando ele respira dama-da-noite, inebriando-se com o cheiro das flores e o vê, divertido, afagar um cachorro vagabundo que uiva melancólico e sorrir para o gato que escapa assustado. Percebe quando ele pára e ajeita o cordão do sapato.

O Tempo abre o portão da casa como se fosse um velho conhecido e entra no quintal da mulher como se de lá nunca tivesse saído.

Colhe o alecrim que sobe como trepadeira pelas paredes da casa, cheira o manjericão, prova, testa, passa o dedo pelos móveis empoeirados da sala, critica tudo e, enfim, sacode um adeusinho com as pontas dos dedos e vai embora displicente.

A mulher que o esperava na sacada fecha os olhos com lentidão e sorri. Não importa. Afaga o brilho da lua praticamente morta, acomoda-se na brisa que voa longe se desfazendo em retalhos de cetim e foge com ele. Escapa pelas frestas dos anos, deixando desenhado no espelho do quarto esse olhar lento, parado, esse rosto flácido, cansado.

Desde então, comemora sempre num dia certo de outubro a memória do Tempo.  

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