ACIDENTES DE PERCURSO
Doca Ramos Mello

Foi uma armação de Darlete Glória - licencinha, um aparte -, o nome dela mesmo deveria ser Darlene Glória, porque sua mãe pretendia homenagear uma grande atriz do teatro lírico, explicava, mas o pessoal do cartório ou não ouviu direito ou era ignorante em artes cênicas, de modo que botaram Darlete na certidão, e Darlete ficou, se bem que tenha sido acreditada como Darlene até os sete anos ("mamãe nunca engoliu o erro"), quando entrou na escola e viu-se diante de nova alcunha, que fazer? Por essas e por outras, preferia ser chamada de Darlê, achava, inclusive, mais chique, "mais coluna social", comentava.

Pois então, foi mesmo coisa de Darlê, enfiar o marido na política, apesar de reconhecer que o sujeito não reunia os apetrechos necessários para se tornar um homem público, era até bastante burrinho, não tinha formação, enfim, um zé-ninguém. Justamente por isso ela avaliou que só a política lhe restava como melhor, mais rápido e mais fácil meio de levar a família a uma condição financeira e social muito boa, ora bolas. E o sonho supremo de Darlê era virar "socialite" - conhecera o termo em uma publicação recheada de ricos e artistas e ansiava por habitar aquele céu de estrelas... Seu ídolo era uma emergente carioca, habituada a promover festas fantásticas de aniversário para uma cachorrinha de estimação - Darlê achava aquilo "o must".

Obrigou o marido a se candidatar a vereador e fez, ela própria, campanha baseada na promessa de que o homem não aceitaria salário porque tinha em seu coração um amor imensurável pela cidade e seus moradores. E uma vontade férrea de trabalhar de sol a sol, de graça, pela comunidade, ajudando, de quebra, a exterminar os políticos profissionais, "gente ordinária que faz do cargo público um meio de vida, exploradores do povo, canalhas..." Foi eleito. 

Após as eleições, Darlê, nomeada sua assessora especial, explicou para os eleitores que havia uma pouca vergonha tão deslavada dentro da Câmara que Honório, o marido agora vereador, não poderia, de forma nenhuma, deixar de receber seus vencimentos por conta de pressões fortíssimas de uma série de "forças ocultas" - que ninguém ousasse desvendar que forças eram essas, tamanho seu poder de destruir a carreira de qualquer político, um negócio muito perigoso! E lembrou que a História do Brasil já vira um presidente abandonar o barco por causa das tais forças, porém a comunidade se aquietasse, Honório era macho, jamais se deixaria vencer por coisas desse tipo, de modo que só receberia o salário para não arredar o pé na defesa de seu povo. "Meu marido vai lutar", asseverava. 

E assim, passou-se o mandato...

No pleito seguinte, Honório já com a boca torta pelo uso e abuso do cachimbo político, aceitou a idéia da mulher de se candidatar a prefeito. Meio lerdo, um tanto fraco das idéias e muito fervoroso adepto dos prazeres etílicos e mundanos, o sujeito estava mais preocupado com a manutenção da grana fácil, porque isso mantinha sua conta bancária recheada e Darlê feliz, enquanto lhe sobrava tempo para dedicar-se ao caso que passou a ter com uma garota da idade de sua filha. Na cidade, comentava-se que a moça estaria fazendo um excelente pé-de-meia à custa do erário, encontrando-se já na marca do gol, a dois passos de ganhar uma casa e botar o bloco da gravidez na rua, para poder garantir estabilidade no desfile e na comissão de frente. "Um filho é mil vezes melhor que um seguro de vida", raciocinava a liberada... 

E como ninguém é de ferro, a moça aproveitou o embalo da festa para acomodar no gabinete do amante "um primo muito necessitado". Gostosão e sem-vergonha, aboletou-se o rapaz, cujo papel na trama não encerrava mistérios.

Se Darlê sabia de tudo isso? Claro. Darlê tinha filosofias práticas de vida...

Povo sem memória, marido eleito, Darlê posando de primeira-dama, dinheiro correndo como água, a roubalheira comendo solta, eis que chegou, finalmente, a hora da tal festinha de aniversário canino. Darlê já havia providenciado um legítimo poodle-toy branco, asmático e enjoado, e só faltava mesmo o evento para que, na concepção dela, fosse coroada verdadeiramente "socialite", ai Jesus! E tudo foi preparado para ser o maior show da redondeza, a mulherada dos políticos locais e da região em bolhas, todas comprando cães ou cadelas para poder comparecer ao evento "comme il faut".

Toda a mídia convidada, notas nos jornais mais prestigiados, deveria ter sido um acontecimento social comentadíssimo. E foi. Se bem que não exatamente pelo sucesso da festa em si...

Ocorreu que aquela "mocinha" - para usar uma nomenclatura muito em voga - "namorada" do prefeito, apareceu na tal festa arrastando um pit bull e exibindo o troféu do barrigão de oito meses. Darlê desceu do salto, enfiou a mão na cara da jovem, que se defendeu atiçando o animal que a acompanhava. Então a cachorrada se alvoroçou, o poodle da primeira-dama sofreu um apnéia tremenda, as mulheres entraram no rolo e o que poderia ter sido o batismo social de Darlê acabou se transformando em "uma tarde de cão", segundo mordaz colunista social da cidade. 

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