BODAS DE FERRO
Luís Valise

 
 
- Feliz Aniversário, querida. Minha vida começou nesta mesma data, oito anos atrás. Antes de você eu simplesmente não existia, era só um esboço.

- Feliz Aniversário pra você também, meu amor. Você foi meu primeiro e único, e será o último.

As taças se chocaram no ar com um ruído cintilante. Jorge e Claudete tomaram um gole se olhando nos olhos, dedos entrelaçados sobre a mesa. Durante o jantar a conversa flutuou em voz baixa. No carro ela sentou-se bem junto a ele, que enquanto guiava, cantarolava “Começaria tudo, outra vez, se preciso fosse, meu amor...”. Subiram a escada sem fazer barulho, espiaram as crianças dormindo, foram para o quarto . Tiraram a roupa na penumbra. Claudete foi ao banheiro quando o telefone tocou. Jorge conferiu as horas: uma e quinze da manhã, quem poderia ser a estas horas? Atendeu em surdina:

- Alô. Silêncio. Repetiu: Alô. Do outro lado uma voz de peixe-boi:

- Chama a Claudete.

- O quê? Quem fala?

- Me chama a Claudete.

- Quem fala, porra?!

- A Claudete, já disse.

- Quê Claudete o quê, seu filho da puta! Quem tá falando? Estava quase gritando. Claudete veio do banheiro, apressada:

- O quê foi, benzinho?

- Não sei, tem um filho da puta aqui querendo falar com você.

- Comigo? Deixe-me ver do que se trata.

- Não vai ver porra nenhuma! Quem é esse cara?

- E como é que eu vou saber? Deve ser algum bêbado! A voz voltou a falar:

- Fala pra ela que eu estou bêbado sim, e que é por causa dela. Jorge se descontrolou:

- Olha aqui, seu filho da puta, pára com isso ou eu descubro quem você é e te fodo!

- Fode nada. Eu quero falar com a Claudete. As crianças acordaram com os gritos, e vieram ver o que acontecia. Claudete despachou-os:

- Já de volta pra cama! E não me saiam de lá! Jorge, deixa eu ver quem é, por favor! Jorge, de má vontade, deu o fone a ela.

- Alô.

- Clau? 

- Quem fala? Por favor, se for um trote saiba que foi de muito mau gosto!

- É trote não, Clau. É saudade, mesmo. Eu agüentei todos esses anos, hoje não deu pra segurar.

Claudete reconheceu a voz. Heitor. Só ele a chamava daquele jeito. Seu namorado antes do Jorge. Caso morto e enterrado.

- Eu não morri, não, Clau. Quer dizer, não morri por fora, porque por dentro estou morto desde o dia que eu te perdi. Quero te ver. Falar com você.

A voz dele estava engrolada. Ele ainda bebe, pensou. Ela demorou para se recompor, Jorge tirou o fone da sua mão, tapou o bocal com a mão, e perguntou:

- Quem é esse cara? Você conhece? Claudete sentiu que nada mais seria igual.

- É o Heitor. Uma pessoa que eu namorei antes de te conhecer. Ele deve estar louco. Nunca mais ouvi falar dele, faz mais de dez anos que a gente terminou, não sei o que deu nele... Jorge estava possesso. Um olhar novo para Claudete, que acendeu um cigarro, esquecida da promessa de jamais fumar no quarto. Jorge rugiu:

- Apaga essa merda! Você sabe que eu não suporto fumaça! E ao telefone:

- Escuta aqui, seu viado! Desligue já esta porra e não torne a ligar nunca mais, tá me entendendo? Nunca mais! O peixe-boi continuou calmo:

- Viado, não. Viado, não. Pergunta pra Clau que ela te conta. Viado, não.

- Conta o quê? Jorge berrava. Conta o quê, seu filho da puta? Por acaso você comeu ela? Claudete ficou puta:

- Que negócio é esse, Jorge? Quem me comeu? Vai falar assim da puta que te pariu! Jorge sentiu que o peixe-boi sorria:

- Não comi, não, porque naquele tempo a gente não comia namorada, só punha nas coxas, chupava os peitos, você sabe como é... Jorge tirou o fone do ouvido, virou para Claudete, a voz um fio de água gelada:

- Você sempre disse que eu fui o primeiro e único. Esse puto tá dizendo que punha nas tuas coxas. E agora, como é que fica? Claudete não acreditava:

- Jorge, do quê você está falando? Você enlouqueceu? Vai dar ouvidos a esse bosta, esse bêbado, esse idiota? Jorge nem piscava:

- Você disse que eu fui o primeiro e único. Disse ou não disse? As crianças apareceram chorando, assustadas com a gritaria. Claudete levantou-se, pegou as crianças pela mão e foi falando com elas baixinho, de volta para o quarto:

- Mamãe está só conversando com o papai, contando um filme, e o papai está rindo muito, achando graça, por isso esse barulhão. Agora vão dormir bonitinho que já é tarde. As crianças deitaram-se, fecharam os olhos, e pegaram novamente no sono. Ao voltar para seu quarto, Claudete ouviu Jorge falando com Heitor, agora sem gritar:

- ...sei... e ela fazia isso?... sei... quanto tempo você fizeram essas coisas?.... tanto tempo assim?... ela sempre falou que eu era o único... não, eu sei, mulher é foda... é, bem-feito pra mim...tá, ela já voltou... tá, fala com ela. Em seguida Jorge estendeu o telefone para Claudete e ficou imóvel, esperando-a falar. Claudete bateu o fone com força, desligando-o.

- Jorge, amanhã a gente conversa, tá? 

- Conversa o quê? Tem mais coisas ainda que eu não sei?

- Não, Jorge. Não sei o que você sabe, nem quero saber. Amanhã a gente vê.

Jorge não concordou, nem desconcordou. Ficou um tempo sentado na beira da cama, a cabeça entre as mãos, cotovelos apoiados nos joelhos. Em seguida levantou, pegou o travesseiro, e foi saindo do quarto. Antes de fechar a porta, ainda falou:

- Se você quiser fumar no quarto, tudo bem.

As crianças cresceram, são rapazes, já. Claudete não mudou muito, só tem um jeitão meio tristonho, como se o sorriso ficasse sempre pela metade. Jorge não se incomoda mais com a fumaça de cigarro no quarto, tem os cabelos grisalhos, trabalha sempre até tarde. Os filhos só o viram sorrir uma vez, anos atrás, no Aquário Municipal, defronte o vidro do peixe-boi. O mais velho estranhou:

- Tá rindo de quê, pai? Jorge apontou pro paquiderme que se movia lentamente:

- Quem é mais feio, eu ou ele? O garoto resumiu:

- Quê é isso, pai? Ele é mais feio, mais gordo e mais burro.

Jorge fez uma festinha no cabelo do filho e foi para o próximo vidro, evitando o olhar de dúvida de Claudete.
 
 

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