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Sérgio Galli

(ou Concerto Barroco ou Fractal XI)

(ao som das chansons de Jacques Brel)

“À noite. Gosto de me levantar as quatro da manhã e abrir a janela para a cidade adormecida. Apesar do ronrom das ruas, é um momento propício para a emoção interior, para essa outra forma de comunicação que eu lembrava a propósito da oração. Nas cidades não se pode mais ver o céu estrelado, que durante tanto tempo constituiu o único espetáculo para os homens. Agora não se vê mais o céu estrelado, mas o monitor. O silêncio, mesmo que relativo, se torna uma raridade e uma dimensão que nos arriscamos a perder. Nesta hora de música ambiente nos elevadores, às vezes penso honestamente que não seria ruim ser monge trapista...”
Paul Virilio

Céu gris Horizonte gris Cidade gris Abro a janela No horizonte prédios pressa panela de pressão fios de alta tensão edifícios concreto & a$o polui$ao do ar da água sonora visual mental polui$ao gris multidão gris gris solidão O que falar de uma cidade que ficou refém do automóvel e das pessoas que se tornaram escravas do automóvel? O melhor seria exterminar os pedestres e demolir as calçadas assim o automóvel dominaria a cidadela que um dia foi de Deus hoje pertence a esse deus ex machina

Abro a janela. Paulicéia gris Envidraçada, fume Na máquina de devorar pessoas São Paulo não há pessoas Somos apenas um número de uma estatística de uma pesquisa de um gráfico de uma tabela Uma cifra um $ uma % Esta é a cidade do automóvel Esta é a cidade do vil metal Esta é a cidade asfáltica pneumática. Esta é a cidade féstifudi Esta é a cidade kit.quitinete kitch. Esta é a cidade xópin. Cidade déliveri. Cidade ótidogui Cidade féchion. Cidade laite. Cidade saite. Cidade undigrudi. Cidade daite. Cidade insaite. Cidade dólar. Cidade 39,99 Cidade sale Cidade off Cidade que já foi chofer Mise-en-scène enfant térrible nouvelle vague avante-garde Ne me quite pas Esta é a cidade cujas pessoas são mero detalhe quando não invisíveis Melhor antes de pessoas somos primordialmente consumidores contribuintes clientes usuários quiçá, cidadão, amiúde, habitantes Fiat lux gris Viver para pagar Pagar para viver

E$ta cidade fede Exala gasolina diesel monóxido de carbono gás metano enxofre chumbo gordura álcool cocaína maconha incenso desodorante xampu pasta de dente E$ta cidade inculta feia suja e malvada Dodeskaden Perversa Pevertida Competir comprar competir comprar concorrência desleal comprar vender atropelar esmagar triturar passar por cima os fins justificam os meios os meios justificam os fins Cidade de pessoas impermeabilizadas empichadas, pixadas Pixeladas. Envidraçadas Egóicas Ególatras Egoísta hedonista narcisista Cada um por si Gente gris

De quatro em quatro anos o ocupante da prefeitura tem uma tarefa que remonta os primórdios da administração A implacável arquitetura da destruição da cidade Tudo em parceria público privada com a especulação imobiliária a indústria automobilística a construtoras bancos comerciante e claro a população que assiste tudo calada com alguns resmungos mas continua de quatro em quatro anos nesse arremedo de democracia ir às urnas tediosamente inserir a cédula com o nome do próximo artífice a continuar a inexorável obra da arquitetura da destruição Tudo é nada O vazio de um écran da tv do computador

Abro a janela na cidade gris Ruído tonitruante buzinas sirenes britadeiras bate-estacas “música” ambiente televisão alto-falantes barzinhos na vila madalena baites teclados vozes vociferantes arrogantes abutres grunhidos gralhas falantes Cidade onde não mais se pode ouvir o som do silêncio Não há tempoespa$o para a introspecção meditação reflexão Silêncio

Cidade gris Dá para gostar de uma cidade onde não há horizonte no céu não há estrelas? Dá para se comemorar o aniversário da gris cidade?

Primavera de 2003 

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