A MORTE É LINDA
Carlos C. Alberts

A Morte é linda. Eu sei: eu vi. 

Eu trabalho no mangue. Dizem que faço parte do grupo de pessoas mais pobres deste Mundo de Alá. Porque não possuo terra. Mas estão enganados. Eu não tenho terra porque não preciso. O mangue me dá tudo. Peixe para o meu sustento. Madeira para o fogão e para as paredes de minha casa. Folhas de palmeiras para o teto, para tecer os cestos e para a esteira sobre a qual me ajoelho, em direção a Meca, na hora da minha prece. O mangue me dá até os motivos para agradecer em minha prece. Fartura, trabalho e beleza. Não, eu não sou pobre. E é lá, no mangue, que fica a Morte.

Silenciosa. Quando percebi já estava sobre minhas costas. Macia. Em seu abraço senti o meio termo exato entre força e delicadeza. Mesmo quando introduziu seus punhais em minha cabeça, não senti dor. Senti algo inédito. Para explicar, a sensação mais próxima é o alívio. Sendo mais exato, o tipo de alívio que sinto quando deito com minha mulher depois de passar uma semana longe de casa, no mangue.

Hoje veio uma inglesa me conhecer. Ela não fala bengali, mas seu ajudante traduziu a conversa. Uma mulher feia. Alta, pálida, magra. Mas com uma voz doce e um olhar triste. Gostei dela. Também está interessada na Morte. Obcecada. Mesmo sem tê-la visto ainda. Ao contrário de mim. 

Perguntou-me como escapei. Contei como meu sogro veio em meu socorro. A Morte me largou e o pegou pelo pescoço. Meu sogro era um homem grande. Mas a Morte o levou como uma cadela transporta seus filhotes. Nos o encontramos no dia seguinte. Na verdade só encontramos sua cabeça, ombros e costelas. A inglesa estremeceu. Não consegui perceber se era por medo ou excitação. A face do meu sogro (fui eu quem a viu primeiro) estava relaxada. Os olhos abertos. Se não fosse pelo sorriso, diria que aparentava estar em paz. Uma face muito semelhante a que eu vejo todos os dias, quando me barbeio. O que me deixa um pouco perturbado. 

Dizem-me que tenho sorte. Que além de escapar da Morte, tenho sido mantido nesta Instituição de missionários cristãos. Aqui tenho muito mais conforto que em minha casa. A cama é macia, os lençóis são sempre limpos. A comida é boa (ainda que não sinta muita fome). Minha família recebe uma ajuda do Governo. Agora eles têm muito mais dinheiro do que quando eu estava em casa.

Os missionários me mantêm aqui porque acham que eu tenho medo de voltar ao mangue. Que estou apavorado por que vi a Morte. Deixo que pensem assim. 

A inglesa foi muito educada e não me perguntou o que eu senti quando a Morte me abraçou. Nem perguntou o que sinto agora. Ela sabe. Ela sente o mesmo. Sabe que, se estivesse em meu lugar, toda a noite teria que se segurar para não voltar correndo para o mangue. Para encontrar a Morte. Rever sua linda roupagem listrada em preto, amarelo e branco. Sentir seu abraço forte e macio. O alívio quando seus punhais penetrassem novamente meu corpo. 

A inglesa escreveu alguma coisa durante nossa conversa. Em um caderninho bem usado. É uma mulher jovem, ainda. Talvez um dia, meu nome, Chandranath Rahman, parte hindu, parte muçulmano, como o mangue onde morei, esteja numa nota de rodapé de um livro escrito por ela. Na nota ela contará a história de um homem que escapou vivo de um encontro com um Tigre de Bengala, mas depois voltou ao mangue e completou seu destino.

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