OS IRMÃOS ANDRADE
Edison Veiga Junior

Juca-Ansado se divertia com o que lia, mesmo quando não gostava. Sua mente era povoada de heróis psicodélicos, damas sofrendo por amor, gatos presos nas árvores, bombeiros apagando incêndios causados pela bituca de cigarro que seu pai sempre fumava. Porque o pai de Juca-Ansado fumava direto. E quando alguém dizia que ele ia morrer de câncer, ele concordava mesmo. Mas quando alguém lhe perguntava o porquê dele fumar desvairadamente daquele jeito, ele respondia que tinha comprado algumas ações da Souza Cruz e queria valorizar o seu produto especulatário. 

Juca-Ansado era diferente de seus colegas por dois motivos. O primeiro é o mais óbvio de todos: já ninguém mais costumava ler livros no tempo de Juca-Ansado, só ele que lia, e lia assim de uma maneira obstinada e quase sexual. O outro motivo é que Juca-Ansado não se apaixonava pela história do livro, mas ficava fã mesmo era dos autores dos livros. Ou seja: sua mente era povoada de heróis psicodélicos, damas sofrendo por amor, gatos presos nas árvores, bombeiros apagando incêndios causados pela bituca de cigarro que seu pai sempre fumava, e todos esses personagens eram os autores de suas próprias histórias. Os heróis psicodélicos escreviam tudo com os laptops de última geração, as damas sofrendo por amor pegavam a pena romântica e rabiscavam cartas patéticas, os gatos presos não escreviam porque gatos não sabem escrever, os bombeiros eram na verdade contistas de primeira qualidade. 

Os que mais fascinavam Juca-Ansado eram os modernistas. Gostava sobretudo dos irmãos Andrade: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Sabia de cor vários poemas do trio parada dura que para ele eram os três mosqueteiros menos Dartagnan que poderia muito bem ser o Manuel Bandeira, manézinho do coração dele. 

Quando Juca-Ansado ficou crescido o suficiente para ser irresponsável e sair aprontando por aí, ele experimentou ácido lisérgico pela primeira vez. E começou a ver coisas maravilhosas em seus livros que lia e aí foram vacas caindo da constelação de Órion, cenas de cinema brotando do palco do Odeon, os Beatles em carne e osso pedindo autógrafo para ele. Juca-Ansado chegou em casa numa noite abraçado com o extintor de incêndio e cantando come on baby, light my fire numa piração estonteante. 

E os irmãos Andrade eram parceiros nessas aventuras por outros mundos. LSD, irmãos Andrade, Manuel Bandeira vestido de Dartagnan. 

Juca-Ansado foi ficando cada vez mais descansado pois a vida era-lhe se não bela ao menos confortável. Pelo menos o sol brilhava até em penumbrosos dias de chuva e todas as garotas eram bonitas mesmo aquelas desengonçadas com caras de nerd. 

Um dia ele decidiu acabar com o LSD, e com o conto. Assim, sem mais nem menos. Quase briguei com ele, dizendo que o conto ainda estava pela metade, faltava o conflito, faltava o desfecho, faltava tudo. Nem parecia um conto ainda. 

- Se quiser pode continuar. Mas terá que ser sem mim!, disse-me Juca.

Mas como? Como continuar sem o protagonista? Logo agora que a história vai ficando legal, talvez até emplacasse um Nobel de Literatura, se fosse filme tinha certeza que levaria o Oscar, o conto ia ficar sensacional. Não. Não acredito. 

- Ok. Você não precisa acreditar. Estou saindo.

Não pode me abandonar assim. Seu ingrato! Não se esqueça que você é minha criação e...

- Não mandei você me dar autonomia. Vida própria, inteligência artificial, capacidade de ser irreverente.

E agora? O que fazer? Ao menos me diga o porquê disso tudo.

- É que fiquei frustrado. Descobri que você é um tremendo mentiroso. Os irmãos Andrade nunca foram irmãos. 

Fiquei só, olhando estático para o computador, resmungando qualquer coisa revoltado. Meu personagem tinha fugido. Em seu quarto restavam apenas um resto de LSD, duas garotas até que bonitinhas e uma vaca das que tinham caído do céu. Os Beatles dormiam ao canto, e roncavam alto os desgraçados! Peguei um livro do Modernismo Brasileiro que repousava, alheio a tudo, sobre a mesa. Fui ver os irmãos Andrade e o Manézinho Dartagnan.

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