SÉPIA
Cléo Siqueira

Ouro. Apesar do escuro das nuvens gestando uma chuva óbvia e indecisa, há um quê de ouro a embrenhar-se sobre o ar, a derramar-se sobre nós e sobre as coisas. Tudo se amarela como uma noite que começasse amanhecendo. Diferente, esquisito, raro. 

Poucas vezes vi algo assim e, não sei se por terem sido poucas, ou intensas de tão novas, decorei-as com meu sangue. Coisas que se decora com o sangue são as que voltam fortes, no peito, a um simples sinal. Qualquer sinal. Uma cadeira empoeirada, um cheiro repentino nas narinas dormentes, um som que fazia tempo não ouvíamos, a cara de um passante desconhecido (ou o seu andar, sua roupa, seu riso), uma noite gelada com céu estrelado, um dia morno (desses que nos abafam a vontade e só nos impulsionam a preguiçar), uma festa de rua... 

Neste momento, em mim, o decorado com sangue ressurge neste ouro que recobre e penetra. Fico como quem dói sem saber onde o ferimento. Fico como quem se perde sem saber onde a saída. Fico como quem chora sem saber onde o motivo para as lágrimas. Fico... fico mesmo. Parada e melancólica. Um personagem em uma cena sépia. Desoladamente sépia. Como a foto esquecida há tantos anos no fundo da gaveta. Como o par de sapatinhos guardado para se mostrar num futuro que já passou. Como o primeiro bordado de uma menina de mais de século. Como a sepultura dos amores que não conhecemos. Ou a lápide de um herói que nos alimentou.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.