FILHA DA TERRA
Márcia Ribeiro

Sempre mantive firme meu primeiro esclarecimento desde quando parti, pois antes de filha da pátria, sou a mais legítima filha da terra. 

Da terra de praias tantas, que nem de todos os nomes lembro mais. Só tenho na memória as imagens de cada uma delas. E vagueiam em minha mente as brigas para decidir quais águas são do azul dos céus que as cobrem, ou dos verdes das montanhas e ilhas que as rodeiam. O cheiro de mar que invade toda a Cidade, fazendo de cada habitante o mais perfeito pescador, sem nem precisar trazer nos anzóis ou puçás um único fruto de suas tantas águas. E são nessas mesmas águas que flutuam as canoas, os veleiros, os camboaças, os navios. Uns com destino às lindas ilhas, outros apenas para irem sem rumo, mas com regresso certo, outros ainda, para aportarem no estaleiro e dali partirem com seus cascos rasgando as águas que enfeitam a minha terra.

Da terra de coreto na praça, enfeitado como um castelo em tantas ocasiões quantas forem possíveis imaginar. Transformado em monumento alegórico em tantos carnavais, em altar para início e fim das procissões, em púlpito para as grandes aclamações, em palco para que a Banda faça o cortejo comemorativo. Porém, a mais romântica de suas funções não poderia escapar. A dos casais de namorados que ali se instalam, para deixarem os menos privilegiados se fartarem dos comentários maldosos, próprios dos que sentem inveja. Meu primeiro beijo, um estalinho que roubou-me noites de sonhos infantis!; roubado às sombras do coreto.

Da terra de sinos com badalos de horários rígidos, tocados na torre da Igreja de Nossa Senhora da Guia, onde um padre se esforça para que de seu rebanho não precise exorcizar os homens fracos nas idéias e as mulheres corrompidas pelas tentações. Do confessionário de paredes repletas das mais sórdidas intenções aos mais inocentes pecados e onde, também, há o desabafo do arrependimento e as súplicas do perdão. Dos bancos que sustentam o senta-e-levanta das missas apregoadas para ouvidos atentos aos mandamentos, à palavra Dele.

Da terra dos chafarizes e cachoeiras que saciaram a sede e lavaram corpos e almas da tropa imperial, dos condes, dos escravos e imperadores. Que segredaram as manhas das sinhazinhas tentadas aos desejos pelos negros escravos, a subjugação das negras servindo aos caprichos dos senhores e fazendo arder o ódio das senhoras brancas. Histórias que a história deixou gravadas na Trilha do Ouro Negro, caminho para as fazendas que receberiam seus escravos e que servia como escoadouro do café de São Paulo e do ouro de Minas.

Da terra que ressurgiu com a chegada da Estrada de Ferro Central do Brasil. Essa danada de estrada que se estendia até a estação de trem da minha terra, onde Seu Pedrinho, da vó Guiomar, trabalhava e onde tantas vezes eu subi para viajar no Macaquinho ou na Litorina, quando nas férias eu seguia para a Cidade Grande. Mas essa não era uma Cidade tão grande quanto a minha, que, ao afastar-me dela, fazia com que meu coração ficasse apertadinho de vontade de me esbaldar nas suas ruas, nos seus morros, nas suas praias. Ainda percorri a estrada de ferro escondida sob o concreto e senti na alma a vontade de cavar até encontrar ali as pedras e os dormentes por onde milhões de vezes caminhei, com o coração aos pulos pela possível chegada do trem de minério, que eu ficava horas admirando ao longe.

Da terra que consegue manter a harmonia entre a arquitetura de suas primeiras construções e o decidido gosto pelas mais modernas. Que causa fascínio, justamente pelo contraste entre os prédios da Prefeitura, da Câmara dos Vereadores, entre outros, e das casas e prédios de veraneio, que fazem da minha terra o porto dos que desejam conhecer um pedaço do paraíso da Costa Verde.

Da terra que hospedou meus primeiros medos a serem enfrentados quando do advento da alfabetização, promovida por uma professora particular na casa de pedra da Rua Cecília Benevides, onde nasci e morei até os oito anos de idade, se não me falha a memória. Só então, já conhecedora das letrinhas e sabendo escrever meu nome completo, ingressei no Grupo Escolar Coronel Moreira da Silva, onde dona Cibele tantas vezes guiou minhas mãos para que eu conseguisse firmar meu gosto pelos estudos. 

Da terra que inspirou-me na minha primeira crônica publicada, Procura-se (Nossa Infância). Esse texto em particular costumo chamar de crônica de um poema, pois falar de minha terra é sempre uma poesia, que trás ao meu paladar a lembrança do sabor das amêndoas secas, caídas à beira mar, e que faziam meus dedos estarem sempre arrebentados ao quebrá-las com a primeira pedra encontrada. Que trás à minha audição os sons de toda a minha infância. Que trás ao meu tato o saber de suas areias. Que trás à minha visão um embaçar límpido, das lágrimas que provo tentando reconhecer o sabor de suas águas.

Que caminhos foram estes que me afastaram de ti? Que lugares foram estes que conheci e que não me fizeram esquecer da minha terra? Que lembrança é essa, viva e sadia, que guardo aqui dentro? Por que meus dedos ficam trêmulos à procura dos sites, aonde posso navegar por suas terras e águas?
As respostas são tantas e quantas forem necessárias para o meu desejoso regresso. Mas de uma coisa estou certa, se eu nunca tivesse partido, nunca a saberia como sei hoje.

Minha linda Mangaratiba! Não te prenderei às minhas promessas, mas preciso por demais andar nas suas ruas, visitar os seus prédios, reconhecer as pessoas, banhar-me nas suas águas. Desejo partir da minha terra.

Até breve, minha Mangaratiba.

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