MORTES E CHUVA
Thaís Emília

Chove desde sua partida. As goteiras soletram seu nome em semitom, tom, tom, semitom, num mandarim monótono. Tento ensinar-lhes cantigas em compassos ternários e toadas para tardes mais longas, mas elas dizem que no silêncio da casa só cabe você.

Já me perdi onze vezes no labirinto de suas solas impresso no soalho empoeirado. E confundo minha sombra nos cantos ou os reflexos fugazes no espelho com seu retorno. Ah, devorei as folhas do seu diário num dia de muito vento. Mas antes decorei cada linha, cada curva de sua grafia. 

No terceiro dia após sua fuga, o dragão de São Jorge apareceu no quintal para roubar galinhas. Ele tinha pulgas nos pêlos entremeados de escamas e algas, e uns olhos tão doces que tive vontade de comê-los, junto com seus conhecimentos da Terra boiando no horizonte lunar.

Ele se foi antes que eu pudesse sequer propor-lhe adivinhações ou um jogo de pique-esconde cujas regras esqueci há muito tempo, junto com os segredos da contemplação do céu noturno e da serventia das bolhas de sabão. Também não sei para quem sirvo sem ajustes ou bainhas.

Sua ausência inaugurou uma eternidade sem esperanças nem salvação de reza-brava. Preciso de dois dias para atravessar o corredor já que a casa inteira é agora muito maior. Esqueci como se ouve as aranhas tecendo e o cacto brotando e não há mais poesia alguma nas aureolas negras de café no fundo das xícaras.

O passado, com você, era melhor. Mas eu preferia esquecê-lo, porque, à sombra das lembranças, meu dia-a-dia parecia sempre mais triste. Sempre mais só. Não queria mais a comparação do passado. Resolvi matá-lo enquanto dormia.

Mas agora – como eu poderia prever, como? - quem me assombra é seu fantasma. A assombração do passado. E contra os mortos os vivos nada podem. 

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