ACORDES DISSONANTES V
Beto Muniz

 
 

De repente eu já não era menino.

Durante algum tempo, muito tempo, acompanhei papai e seu saxofone seduzindo passantes nas esquinas da cidade. Adolesci de fato com o incomodo de ver o chapéu sobre a caixa do sax esperando alguém lançar moedas, porém eu vigiava. Vez ou outra me pegava distraído, hipnotizado pela simbiose homem-instrumento-música. Encantamento puro, sem cenários internos e sem horizontes, eu tinha perdido a capacidade de associar minhas emoções e sentimentos à paisagens. Uma única vez, depois de anos, veio uma sensação nova, de rochas sobrepostas formando torres de um castelo medieval.

Era época de festas, período em que papai abandonava completamente o oficio de pedreiro e se dedicava integralmente à música animando promoções e liquidações em lojas e magazines. Eu o acompanhava pelo prazer de ouvir as marchinhas substituindo as melodias noturnas. Apenas prazer, não havia chapéus a vigiar. Terminado o compromisso no meio da tarde saímos da loja sem pressas, sem urgências. Eu carregava a maleta e papai o saxofone preso pela correia ao pescoço. 

Paramos numa esquina, em frente a um salão de cabeleireiros onde, sem premeditações, papai tocou a música desconhecida, pungente, aquela da praça sem estrelas, que eu nunca soube o nome e desconfio que era de sua autoria. Tocava sem pretensão alguma, talvez para me agradar, pois sabia que eu adorava ouvi-la. Em meio à melodia uma senhora saiu do salão, depositou uma nota de valor considerável diretamente no bolso do meu pai e perguntou se ele poderia tocar do outro lado da rua. Ele sorriu e disse que sim, poderia perfeitamente tocar lá do outro lado da rua. A senhora agradeceu e entrou. Papai sequer moveu um passo. Apenas fechou os olhos, ajeitou a correia do sax sobre a gola do paletó, pigarreou, posicionou a boquilha e transmutou sua dignidade em som. Tocou como se a música tivesse o poder de varrer preconceitos, ignorâncias e agravos. 

Senti orgulho. Um orgulho que me trouxe a última paisagem interna, um cenário de rochas sobrepostas formando uma torre enorme de algum castelo colossal. Ninguém saiu para reclamar e já era noite quando finalmente fomos para o outro lado da rua, cansados e dignos. É a última lembrança que tenho do meu pai. Dias depois nós o perdemos. Eu tinha quinze anos e herdei seu saxofone. Ao tomar posse da herança já não guardava nenhum vestígio do menino, não encontrei paisagens para traduzir a saudade crescendo, agigantando, se alimentando do tempo e ficando cada dia maior.

Penso que não há mais espaços em mim. Nem para a saudade que continua a crescer, nem para as paisagens que eu daria tudo para resgatar. Penso também que essa ausência de cores e cenários nas emoções e sentimentos é o principal dissabor de ser adulto, e eu estenderia o chapéu, sem nenhum pudor, se esse gesto voltasse a formar paisagens dentro de mim.

(não continua)

 
 

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